Tuesday, May 30, 2006

AMBIVALÊNCIAS
























não
não me descrevas a tua dor
não a saberia sequer ler
os meus olhos apenas têm olhos
para a alegria sem medida
quem sabe até deslocada e
não choram nem sabem
não são depósitos de lágrimas
não são depósitos de lágrimas
repito
não.

sim
dá-me notícias da tua dor
quero analisá-la reconhecê-la
para poder exclamar na rua:
ali vai a pungente dor dela!
adivinhar-lhe os contornos
as derrotas e as misérias
e como me atraem os dramas
e como me atraem os dramas
repito
sim.

...........................................................................................

O autocarro parou. Era tal a confusão de sentimentos que uma parte dele desceu, perdendo-se logo a seguir no meio da multidão que se agitava nas ruas. A outra, permaneceu no carro, sentada no lugar logo a seguir ao da mulher, que continuava a chorar silenciosamente. Há viagens que não devemos iniciar, divididos.
Palma de Maiorca, 2006. Poema, texto e foto de: Alberto Oliveira.

Friday, May 26, 2006

NAVEGAÇÕES (IM)PROVÁVEIS



















aparto-me deste porto
com mil sonhos desmedidos
do encontro com o teu corpo
num velejar de sentidos
sem rota pré-definida
nem âncoras determinadas
que também dão sal à vida
as viagens (re)inventadas.

................................................................................................

Deodato olhou o céu e franziu o sobrolho; é verdade que, até onde a sua vista alcançava, não se vislumbrava o mínimo sinal de nuvem. O azul, reinava em pleno nas alturas. Mas o sexto sentido de mareante experimentado dizia-lhe que hoje não era dia para aventuras que podiam acabar em tragédia. Antes que outros Titanic´s da sua vivida vida lhe ensombrassem a memória, ouviu a voz de Adozinda G. «Anda p´ra dentro Déo! que este tempo engana muito... » . Voltou as costas ao cais e caminhou em direcção a casa.
Algures ao largo da costa algarvia, 2006. Poema, texto e foto de: Alberto Oliveira.

Tuesday, May 23, 2006

REMINISCÊNCIAS



Funcionava assim a modos como um ritual desde a morte de Francisco, o único homem que tinha conhecido, gostado e casado. Enquanto as suas vizinhas ou antigas companheiras de venda mais chegadas se aperaltavam para a missa dominical, Amélia descia do Marquês, onde morava, em direcção à baixa portuense e fazia uma longa paragem no mercado encerrado neste dia. Era assim que gostava de voltar atrás no tempo; do lado de fora da memória, sem dramas nem estridentes assoadelas nasais. Detestava choraminguices e estórias de vidas que conhecia e tinham quase sempre um ponto em comum quando recontadas: a tristeza. A puxar à dor de peito, a prolongados áis e por vezes ao desmaio prematuro.
Apoiava a mão direita à grade da entrada do mercado e olhava para o interior. De imediato, o silêncio quase sepulcral do espaço, era invadido pelas vozes pregoeiras das vendedeiras e do seu diálogo constante com a clientela -enriquecido pelo palavrão que a gente nortenha tão bem sabe usar sem melindre ou ofensa, da disposição e frescura dos produtos expostos que são um regalo para a vista e da cereja em cima do bolo que é a zona das floristas em colorido reconfortante para o visitante mais virado para o alimento artístico do espírito. Depois, os seus olhos desciam mais abaixo e via nítidamente, o talho onde conheceu Francisco. Um sorriso pacífico instalava-se-lhe no rosto; era o sinal que a visita terminara.
Na cozinha, a cebola que picou para o refogado do almoço, fez-lhe rolar duas lágrimas pela face enrugada. Já era mais que tempo de se deixar destes comeres apaladados, admitiu.
Bolhão, Porto, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, May 20, 2006

NOBLESSE OBLIGE



Diana não queria acreditar no que os seus olhos liam. Em letra bem clara e maiúscula, escarrapachada no muro do quintal do Duarte -um cuscuvilheiro de primeira água!, o pedido de casamento que só podia ser dirigido a ela e de que também não seria difícil adivinhar a procedência. Não havia cão nem gato naquela rua que não a olhasse de soslaio pela altivez no porte, no trajar pretencioso ou no discurso rebuscado de que se utilizava para comprar na loja de congelados duas simples postas de maruca. Daí o apodo de princesa que a vizinhança lhe dera e que ela não desconhecia. Por outro lado, Gaspar - o seu recente amor, também a tratava assim; carinhosamente, não por desajustada zombaria. E não seria a primeira vez que, ao vir buscá-la para uma noite de farra, gritasse alto e bom som à sua porta: "Princesa, cheguei!".
Diana gostava de Gaspar. Depois de uma vida bem curtida, estava na altura de assentar; até porque a idade já não lhe permitia grandes performances artísticas... e ele seria o homem ideal para fazer a transposição, sem grandes sobressaltos, para uma vida a dois de facto. Mas esta atitude destrambelhada, de mau gosto e que vinha pôr em causa a sua reputação, Diana não podia aceitar e por isso tomou uma decisão; difícil, mas que não podia fugir a ela sob pena de renegar princípios que defendia.
Já a noite tinha caido quando Gaspar chegou. Depois de ter batido à porta de Diana, três ou quatro vezes e de ter soltado o ardente "Princesa, cheguei!" outras tantas, é que reparou que ao lado da frase que escrevera, estava outra pintada de fresco; " Este castelo fechou para obras; vai a Espanha, que a oferta é generosa e variada!"
Almada, 2006. Texto e foto de : Alberto Oliveira.

Wednesday, May 17, 2006

IMPENETRÁVEL



Quase esbarrou nela quando -ah! a sua incontornavel e quantas vezes desnecessária-necessidade de se apressar ao que levava!, atravessou a rua para ir comprar o jornal. Apressadamente -pois claro! pediu-lhe desculpa pela desatenção, que os seus modos sempre se pautaram pela cortesia, sabe quem, com ele lida de perto. Não deu sequer para atentar com tempo -que tempo era coisa que lhe escasseava no momento (e nos outros!) no rosto, nem se recorda de ter ouvido sair da sua boca qualquer palavra; de desagrado ou de compreensão. Isso foi de manhã.
Ao final do dia e já arquivado o episódio, no ficheiro "sem interesse" da sua memória, regressava a casa pelo mesmo caminho, quando no exacto local onde se dera o casual encontro, a viu. Tomé não acreditava em acontecimentos bizarros, encolhia os ombros a coincidências e de milagres nem queria ouvir falar. A sua máxima resumia-se a três palavras: "ver para crer". Mas ali estava ela de facto; nem mais, nem menos um milímetro afastada do cenário matinal. Aproximou-se curioso, mas sobretudo movido por um impulso que nunca conhecera antes.
Era incrivelmente bela! O longo e sedoso cabelo ornava-lhe a cabeça perfeita de linhas misteriosamente egípcias. O olhar parecia querer perder-se para além da história, quem sabe se carente de ver acontecer outras estórias... de amor. Os lábios carnudos e o peito farto. Tomé, perdeu a cabeça e disse-lhe tudo o que nunca suspeitou dizer a uma mulher. O homem da banca de jornais cortou-lhe o discurso empolgado «Não se esforce amigo; já muitos o tentaram e você não será o último. Fazer falar uma estátua é o sonho de muito boa gente e eu que o diga; por vezes, quando falo com a minha mulher, até parece que estou a fazer a sua figura... »
Palma de Maiorca, cidade, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, May 14, 2006

ENCONTROS IMEDIATOS



Rudolfo caminhava sem um rumo estabelecido. Não era a primeira vez que o fazia e não seria a última, porque confiava que até onde as pernas o levassem, estaria tudo bem. Esta técnica tinha a vantagem de desligar o cérebro do resto do corpo e libertá-lo para outras tarefas cognitivas bem mais interessantes que cansar a vista na montra da loja de produtos dietéticos, frequentada nas horas comerciais por uma fauna esquisitíssima, naquela outra com o vidro preenchido de anúncios de casas que pelos vistos se vendiam como ginjas -tal a proliferação de lojas de tal ramo, ou ainda na janela de rés-do-chão do número treze, onde um gordo gato preto de olhar nostálgico de Janeiros passados, parecia querer lamber aquele pedaço de rua. E em tão matinal momento do dia, havia a vantagem de não se ouvir ainda, o som de uma cidade a viver desenfreadamente.
Neste cenário de quase silêncio, sem gente que a vista pudesse alcançar, Rudolfo ouviu uma voz tão perto de si, que as suas pernas surpreendidas suspenderam a marcha. «Desejo-te um óptimo passeio, mas cuidado ao atravessar as ruas. Olha que há para aí cada maluco!... ». O seu olhar varreu redores e arredores e quedou-se mudo de espanto numa mão que se encontrava à sua esquerda vogando no espaço próximo da parede da casa do Rodrigues da tabacaria. Acenou-lhe brevemente e desapareceu. Atónito, Rudolfo, juntou dessa vez as pernas ao pensamento e voou para casa. Mais calmo e depois de beber um copo de água bem fria, percebeu. Era a mão que raramente metia à consciência.
Algures no Algarve, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, May 11, 2006

A DISPUTA


Poder-se-ia dizer que por puro descuido, caira ali aquela maçã* brilhando provocante ao sol de Abril num tempo de dificuldades e provações que há uns tempos largos os animais não tinham memória. Pior ainda, pois de aves se tratavam e os humanos, receosos de maleita viral devastadora e anunciada em tempo oportuno, a tudo que esvoaçasse, independentemente de tratamento de choque a aplicar, quanto mais longe da vista e do coração, melhor.
Embora em maior número, os pombos não possuiam poder de fogo capaz de resolver uma contenda desta natureza. Sairiam derrotados pela certa, com pesadas baixas e sem o prazer dos poucos sobreviventes terem feito o gosto ao bico no precioso fruto. Sendo certo que aquele terreno lhes pertencia por natureza, há algum tempo que as gaivotas se pretendiam estabelecer por ali, sem olhar a meios nem a leis pelas quais os animais se regiam. Argumentavam apenas que o tempo era cada vez mais instável, os rios caudalosos, peixe nem vê-lo e tinham de resolver a sua vida também em terra. Por agora não atacavam, pois havia que dar tempo ao tempo... ou a uma investida suicida de um dos adversários .
Sentado no banco do jardim, Gustavo presenciava o drama desde o início. A princípio até tomou o partido dos pombos por razões de justeza democrática. Mas quando se recordou que há uns anos atrás, uma ave destas lhe deixou uma enorme cagadela nas costas de um blazer acabado de estrear, achou que o impasse tinha de acabar imediatamente e a favor das gaivotas. Dirigiu-se a uma cabine próxima, consultou a agenda e discou um número. Ouviu uma voz do outro lado e alegrou-se «Bush!! how are you?!... »
* Clicar na imagem para ver melhor a maçã.
*Praça Gomes Teixeira, Porto, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, May 08, 2006

A ESTAÇÃO SEM CORRESPONDÊNCIA PARA O AMOR


Aconchegado no colo de Alice, Rui voltava decididamente as costas às gentes em trânsito, nas ânsias de chegarem a destinos rotineiros nas idas-e-voltas da vidinha há muito determinada por um horário chamado destino. Para ele, o que contava era o momento; aquecer o pensamento no ventre morno dela e imaginar-se o dono de todos os combóios do mundo, estações e apeadeiros.
Ela, olhava de frente as composições que a maior parte das vezes nem paravam -tal a importância no mapa da vilória, e procurava perceber se tempo houvesse para tal, nos rostos de quem viajava, indícios de alegria de viver ou marcado desalento existencial. Não que procurasse fazer um levantamento exaustivo sociológico sobre o tema " diz-me quem és, digo-te como viajas"; não tinha conhecimentos para empresa de tamanha envergadura. Simplesmente interrogava-se se valeria a pena contribuir para a desertificação do interior e instalar-se no litoral.
Alice era uma modesta empregada de cabeleireira. Rui, o filho do chefe da estação.
Verge de Lluc, Palma de Maiorca, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, May 05, 2006

O PARAISO PERDIDO





Já a tinha visto antes. Estava na esplanada no centro da cidade com um café meio bebido e a olhar para ontem -como ele gostava de dizer, referindo-se aos momentos em que se entregava à divagação pura e inconsequente, quando ela passou lesta, sem rumo conhecido mas deixando atrás de si um rasto perfumado que não enganaria quem lhe quisesse seguir a pista.
Nessa altura, e regressando ao seu mundo de-faz-de-conta, Gaspar imaginou-se no encalço de tão atraente fêmea, logo sonhando encontrar paraisos perdidos (se é que alguma vez os tinha conhecido... ) e quem sabe, dar livre curso a uma paixão daquelas bem escaldantes, para depois ter finalmente uma história digna desse nome e que suplantasse em pormenores mirabolantes as do Rogério, seu colega de trabalho na Companhia.
Guiado por algo inexplicável, pagou o café e subiu a avenida até ao centro da cidade. Numa rua à esquerda, situava-se a estação de camionagem. Entrou e viu-a de imediato; linda, grande e transparente. No seu dorso farto tinha o nome tatuado: Eva! Gaspar tinha-se apaixonado por uma camioneta de passageiros.
Albufeira, 2006.Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, May 02, 2006

A MULHER QUE NÃO QUERIA SER FOTOGRAFADA


Se me inquirissem sobre o que seria para mim o modelo da amizade, um dos nomes que associaria de imediato era o da Luisa, ao perfil que desenhasse. Porque de facto nos conhecemos desde sempre e porque ao longo das nossas vidas paralelas temos sabido manter a tolerância nos diálogos sobre opiniões diversas e nunca sentimos a tentação de trairmos esta relação. Razões mais que suficientes para fundamentar esta mútua afeição.
Mas Luisa tem uma pequeníssima mania -se assim lhe posso chamar, que é a de não se deixar fotografar seja em que circunstância fôr. Já discorremos sobre o assunto e ela tem-se mantido fiel aos seus argumentos; "que não é fotogénica" e "que quem a quiser conhecer pessoalmente que venha ter com ela. Que a sua cara -e o corpinho... , não são para andar por aí, por portas e travessas e utilizados sabe-se lá por quem e com que fins... ".
Do seu primeiro argumento, decorrem as minhas veementes réplicas e não tem razão. É daquelas mulheres que não precisam de filtros para aparecer numa capa de revista ou num spot publicitário. Do outro, estamos em sintonia e até existe protecção jurídica sobre o assunto. Ainda se ela fosse uma figura pública... o que não é o caso, até porque Luisa é uma mulher recatada e nada propensa a ser alvo de atenções despropositadas...
Porque ninguém lhe conhece uma foto em público, procurei fazer-lhe uma surpresa num destes belos dias de Primavera. Socorri-me de mil e um expedientes, dei voltas à imaginação e... ela parecia que adivinhava, para nunca aparecer enquadrada no rectângulozinho da digital. Tive que me dar por satisfeito com a imagem acima apresentada e que é apesar de tudo uma vitória; a Luisa bem estugou o passo, mas desta vez foi apanhada mesmo no final da fotografia.
Serralves, Porto, 2006.Texto e foto de Alberto Oliveira.