Sunday, March 29, 2009

O TEMPO VIGIADO

Vigiando as águas vigio o tempo filtrado em areias finíssimas de praias paradisíacas anunciadas por agências de viagens que me vendem sonhos que dificilmente se cumprem em tempo real. Sonho com agências de viagens viajando a preços desde e acabo por viajar com preços acima de. Vigio a bagagem até onde é permitido aos meus olhos acompanhá-la antes dela me apartar e, por cada mala perdida, fico mais pobre de uma amiga chegada. Ao vigiar a água que me lambe os pés reconheço que não é tão azul marinha ou verde mar como a que os folhetos prometem: as mais das vezes é amarelada tal como a das imagens desses folhetos, queimados pelo sol de agostos passados. Dos banhos, não sei o que mais vigiar: se a multidão que se banha ou a multidão que me desaba em cima com o banho por tomar. Por um destes dias - acrescentada mais uma hora de claridade a cada um deles por força de um relógio que constantemente vigio, estarei a caminhar sob a areia húmida de uma qualquer praia hoje imaginada, na expectativa de que, pelo menos, a cor das bandeiras não amareleça e me confunda, como a dos folhetos de viagens expostos ao sol dum outro estio. Mas nem tudo são más notícias: a temperatura voltou a cair para valores mais baixos e acorda-me para a realidade. A de ter ainda mais algum tempo para voltar ao assunto.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, March 21, 2009

UM AMOR DIFERENTE





Foi numa sexta-feira à noite no fim de uma aula de escrita criativa. Abraão há um ror de tempo que não tirava os olhos de Clarinda e reconhecendo que Clarinda não desviava os seus dos dele, decidiu tomar a iniciativa de acelerar o caso, não fosse o dito resvalar perigosamente para um inócuo e desmotivante platonismo. Abordou-a, procurando aparentar alguma casualidade «O que dirias se eu te convidasse a darmos uma volta amanhã?» Ela não mostrou qualquer embaraço «Podias pelo menos perguntar se eu ando com alguém.» Nem lhe deu qualquer hipótese de retorquir acrescentando «Não ando. E já tens algo em mente?» Ele não pensou duas vezes «Bom, se estiveres de acordo podemos ir à Feira da Ladra.» Clarinda teve a leve suspeita que aquele primeiro encontro com Abraão bem poderia vir a ser também o último «Agora percebo porque andas na escrita criativa: és pouco original. Mas nada de falsas ideias a meu respeito: eu sou tão, tão criativa, que ando a ver se com estas aulas tanta criatividade tenha um intervalo. Bom, vou dar-te o benefício da dúvida, pode ser que amanhã me surpreendas.» No dia seguinte, depois de percorrerem Lisboa de ponta-a-ponta ele anunciou triunfante «Chegámos!» Ela não podia crer no que ouvira «Mas isto não é a Feira da Ladra tal como a descreve o Alfredo Legível!» Ele sorriu benevolente «Apenas quis confirmar se tinhas lido o último texto do Papel de Fantasia.» Foi assim que tudo começou. Maria Clarinda Criativa e Alfredo Abraão Legível uniram os seus destinos e tiveram muitos blogs colectivos.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, March 13, 2009

FEIRA DA LADRA







Não querendo correr riscos, tinha estudado ao pormenor esta sua primeira vinda à feira. Mas a verdade é que a coisa não começou da melhor maneira, pois quando chegou, o único lugar que não estava ocupado situava-se bem longe da zona nevrálgica do evento: digamos que se encontrava onde a feira se iniciava, para os que entravam por ali, ou terminava para aqueles que dela se despediam ... Abriu o pano preto aveludado - com algumas nódoas bem visíveis que teria de ter o cuidado de cobrir com os objectos expostos, estendendo-o sobre as pedras irregulares do passeio. Depois retirou um papel de um dos bolsos do blusão e consultando-o amiudadas vezes foi distribuindo os objectos que tinha trazido de casa. Era nesta montagem que apostava o êxito do seu negócio. Numa primeira fila ao comprimento do pano, alinhou (por esta ordem) os livros A Felicidade Conjugal de Tolstoi, À Beira do Abismo de Chandler (da colecção Vampiro), Gabriela Cravo e Canela de Amado e Vidas Secas de Graciliano. Voltou a guardar na sacola Angústia Para o Jantar de Sttau Monteiro, não fosse o diabo tecê-las, substituindo-o pela Feira Cabisbaixa de Alexandre O´Neill... A fila seguinte foi dedicada aos albuns em vinil produzidos: But Seriously de Phil Collins, Achtung Baby dos U2, Cantigas de Maio do Zeca, O Despertar dos Alquimistas de Fausto e o Canto da Boca ("é terça-feira, feira da ladra... ") de Sérgio Godinho. Ia jurar que tinha clientes para o Trio Odemira, mas não se aventurou. Na terceira e última fila, notas e moedas. Das de mil escudos em papel, de dona Maria II, às cunhadas de vinte e cinco tostões da "Caravela". «Do século vinte e um, tem alguma coisa?» perguntou o primeiro potencial cliente a Alfredo Legível «Tenho o Papel de Fantasia. Quer dar uma vista de olhos?»

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.