Wednesday, September 30, 2009

FUGA FUGAZ (1)












"Mãe! o pai vai a guiar aquele carro preto!!" gritou Ramiro, o mais velho dos quatro irmãos, apontando o dedo na direcção do veículo. Eunice, que pedalava sem mãos - uma habilidade que lhe tinha ficado de muito nova e que lhe dava imenso jeito para pentear o neófito Bartolomeu enquanto conduzia a prole a caminho do infantário - não queria acreditar no que os seus olhos viam: Jesualdo, o pai da criançada e seu esposo há dez maravilhosos anos, ia de facto ao volante de um carro negro-como-a-desgraça, ziguezagueando perigosa e velozmente por entre o trânsito caótico da cidade. As sombras de um imprevisto e funesto acontecimento, pairaram repentinamente no universo azul de Eunice: se o seu homem tinha saido de casa duas horas antes de bicicleta (eram ambos amigos e associados do ambiente) e por esta altura do dia já deveria estar no seu gabinete camarário a despachar com despacho o que havia a despachar, porque misteriosa razão se encontrava agora no centro urbano, e com um comportamento que lhe parecia a ela uma fuga desordenada para a frente? Teve de voltar atrás, no tempo, e reunir fragmentos recentes de conversas de Jesualdo ao telefone, com pessoas que ele afirmava serem "do trabalho"...
Continua no próximo(?!) número.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, September 21, 2009

E DE REPENTE O AMOR















Quando ele suspendeu a corrida contra o tempo de todos os seus despreocupados e agradáveis dias úteis e lhe perguntou "se precisava de ajuda para atravessar a larga avenida" que a separava da gravilha solta para a compactada e entendiante actividade que lhe ocupava um terço do total das horas de uma semana - sem contar com as dos dias inúteis, que a essas nem tinha coragem de as contar - ela não se mostrou surpreendida: acreditava piamente que à condição humana não faltavam momentos de imprevisto enamoramento e aquele ciclista não tinha ar de quem se socorria de produtos dopantes para atingir fins menos confessáveis. Agarrou-se de tal modo à ideia do romance caido do céu aos trambolhões-em-duas-rodas que já se via a viajar por seca & meca na companhia do seu galante companheiro. Os dois, de tandem. De olhos brilhantes de felicidade, preparava-se para responder afirmativa e alegremente quando o coração lhe caiu aos pés: reparara que ele tinha uma pedra no sapato*...

* Não seria bem uma pedra; era mais uma pedrinha. O homem também não usava sapatos; calçava havaianas. Mas isso retira ou aumenta alguma coisa ao conto?

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, September 04, 2009

O TAMANHO É IMPORTANTE?








"A dele é maior que a tua!" atirou a jovem que passava sem afrouxar o passo e deixando na dúvida os dois amigos. Rodando o pescoço, Romualdo ainda tentou perceber a qual deles era dirigida a frase mas o seu movimento de nada lhe serviu pois a cabeça de Domitilia apontava o caminho que o corpo seguia obediente: em frente e sem variações. Por seu lado, Horácio - agrimensor de profissão - procurou a olho, calcular em centímetros a desigualdade que tinha provocado o comentário feminino. Mas a verdade é que, por mais medições que fizessem (chegaram ao ponto de encomendarem estudos a diversas empresas acima de quaisquer suspeitas... ) todos os resultados apontavam para um empate técnico. Ou seja, as salsichas de ambos eram praticamente iguais no tamanho e até - pasme-se! - no grau de desempenho. No entanto, a amizade que unia Romualdo e Horácio, não era impeditiva - bem pelo contrário - de cada um se afirmar diferente do outro (para melhor) e de deixar isso bem claro, o que concorria decisivamente para dividirem prémios e honrarias em concursos nacionais deixando a concorrência a significativa distância. Com Domitília, as coisas fiavam mais fino: tinham acabado de lhe cortar a palavra num programa de rádio de opinião pública cuja temática versava "o caso dos enchidos isentos de impostos" e, desiludida, dedicava agora o tempo a desinquietar o ego de gente que dificilmente conseguia distinguir o lombo de vitela do pernil de porco.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.