Friday, November 27, 2009

DOMINAÇÃO DE SENTIMENTOS (9)







Deixou as crianças no infantário e fez a pé a distância que a separava da paragem do autocarro para o hospital de Santa Maria onde ia visitar Umbelina, uma amiga de longa data, vítima de atropelamento e fuga na avenida 5 de Outubro. Do atropelamento resultaram múltiplas fracturas na amiga e, ao que se sabe, da fuga o fugitivo saiu disparado e ileso. Mas os seus pensamentos, por esta altura, não estavam centrados na azarada Umbelina. Por mais voltas que desse à cabeça, Eunice não compreendia porque razão Jesualdo lhe enviara um e-mail convidando-a para um jantar, onde o assunto se resumia a um misterioso "ou comem todos ou... ". Sendo certo que, quando o marido chegava tarde da noite a casa, já Eunice dormia profundamente, e enquanto ele ainda dormia a sono solto pela manhã, ia ela a caminho do infantário com as crianças, isso seria motivo suficiente para ele não optar por um telefonema, num momento em que ambos estivessem acordados? E o que quereria dizer "ou comem todos ou ... "? Seria uma ameaça velada de significado oculto ou um modo claro de fazer perder o apetite ao mais faminto dos comensais ? E afinal era um jantar a dois ou Jesualdo convidara também os amigos com quem se fazia acompanhar, aos fins-de-semana da época venatória, divertindo-se a darem cabo da vida aos tordos? Os sentimentos contraditórios eram de tal ordem (continuava a ter imensas desconfianças sobre a fidelidade de Jesualdo, mas certezas, apenas aquelas que a intuição lhe permitia), que o mais assisado seria aceitar o convite e tentar perceber onde começava o menu e paravam as modas. Acomodada no interior do transporte colectivo, enviou uma mensagem ao autor desta história «Se eu não aceitasse o convite, queria ver como é que descalçavas esta bota.»

Continua. Sem esgotamentos académicos ou sofrimentos pandémicos.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, November 19, 2009

O INOCENTE DO COSTUME (8)










Avaliou melhor a situação e decidiu-se pelo "Manuel dos Grelos". Igual a tantas outras casas de restauração nas ruas secundárias da baixa pombalina e de clientela mais ou menos volante, dificilmente o reconheceriam das arruadas recentes pela capital uma vez que, desde essa altura, não tinha desfeito a barba e deixara crescer o cabelo que agora lhe tapava as orelhas. E aproveitaria para aparar as sobrancelhas que tanto gostava de arquear num tique de sobranceria, no salão de cabeleireiro unisexo, contíguo à casa de pasto. O "Atira-te ao Rio... " ficaria para mais tarde, talvez quando aqueles edifícios desactivados, à beira-d´água, e em permanente risco de desabar sobre a cabeça dos passeantes, acabassem por ruir por iniciativa(?!) própria. Ligou para o número que vinha na imagem e respondeu-lhe uma voz feminina no idioma de Lord Byron com indisfarçável sotaque beirão. A campanha do executivo de pôr os portugueses a falar inglês pelos cotovelos, estava a resultar, raciocinou, solicitando de imediato «Mesa para quatro, dia tal, às tantas horas. Sim, eu sei que é o meu secretário que costuma fazer as marcações, mas hoje deu-me uma de cidadão comum.» Despachou em grande velocidade uma associação de amigos do hóquei sobre o gelo, de Marvila, e uma companhia de circo nipónica, com elefantes trombudos e hienas sorridentes, que pretendia assentar arraiais no Intendente, na quadra do Natal. Esfregou as mãos (gesto que preludiava o início de aturado trabalho intelectual ou a impaciência sôfrega de atacar uma travessa de bacalhau com todos) e atirou-se à tarefa de enviar convites aos outros personagens desta história. Sorriu inigmaticamente e, sem se preocupar se o gabinete estava ou não, minado de escutas, disse para si, em alta-voz «Então a perseguirem-me?! Quando perceberem que um dia destes será o dia do cacador... » enervando-se logo a seguir por ter dado conta, tardiamente, que não tinha cedilhado o c de caça. Recompôs-se e consultou a lista de e-mails que o autor da história lhe tinha cedido previamente. O primeiro a ser enviado teria como destinatária Eunice, sua desconfiada esposa.
Continuará, até que os dedos me doam.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, November 11, 2009

À MESA TUDO SE RESOLVE ? (7)










Com tanta perseguição, pouco tempo lhe sobrava para fazer aquilo que mais gostava: dar passeio às pernas e aos olhos pela beira-rio. Hoje, mandou às urtigas, os cuidados de olhar de soslaio para quem lhe ia na peugada e deu consigo a ver as vistas. A Praça do Comércio que continuava a não fazer jus ao nome, não comercializando absolutamente nada e se mantinha firme no primeiro lugar do ranking das "obras dificilmente concluidas em tempo útil", arrebatado recentemente às de Santa Ingrácia, dava ideia de um mega set da sétima arte, dirigido por nomes oscarizados na arte das derrapagens em grande velocidade. Surpreendeu-se uma vez mais, com a largura que rio agora apresentava. Num autêntico golpe de mágica, Cacilhas estava a um palmo de distância da margem onde se encontrava. Aquela tinha sido a solução financeira mais económica encontrada pelo executivo, sendo que assim, as pontes de grande envergadura deixavam de fazer sentido, uma vez que a travessia a nado seria uma opção de grande alcance social e desportivo. É verdade que foi o cabo dos trabalhos para retirar água ao leito do Tejo, mas com a ajuda da população sénior do distrito de Setúbal - com a sua inestimável experiência de vida - e das crianças das escolas da Grande Lisboa - mais os seus baldinhos de praia - a coisa fez-se, pela primeira vez e no âmbito das obras públicas, no prazo pré-estabelecido. Em Alcântara, a canção que pairava nos ares daquele bairro ( "A carga pronta metida nos contentores/adeus aos meus amores que me vou/ p´ra outro mundo... ") trouxe-o ao mundo que o atazanava nos últimos dias. E teve uma ideia: porque não organizar um almoço no "Atira-te ao Rio e Diz que te Encharcas" com seguidores e perseguidos desta história e onde tudo se deslindasse? Jesualdo* (Bibi para os familiares mais chegados) já tinha na cabeça o convite-chave para o repasto: "ou comem todos ou... ".

*Por imperdoável lapso, na imagem não se distingue claramente a figura de Jesualdo. Ele está totalmente encoberto pelo homem de camisa azul e calças negras (à direita da foto) que se encaminha na direcção do Mosteiro dos Jerónimos.
Continua no próximo texto.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, November 04, 2009

EM DEFESA DA HONRA (6)









Um destes dias, em conversa de circunstância com um vizinho, Jesualdo ficou a saber que o seu nome era referenciado na blogosfera. Após ter matado o bicho da curiosidade - não fosse ele homem de convicções fortes - também se teria matado, porque o que leu àcerca de si, apenas se poderia classificar de uma miserável infâmia. Revoltado, reuniu no Martinho das Arcadas, familiares, amigos e conhecidos e relatou o que tinha lido. Foi sereno no início, emocionou-se no meio e irritou-se depois. Quando ao concluir - na torrente de argumentos, afirmando-se marido exemplar - interrogou «vocês estão a seguir-me?» e a plateia em uníssono aquiesceu, abriu os braços desalentado. Anónimo entre a assistência, o autor destas linhas também não achou graça nenhuma ao coro afirmativo, porque, seguramente, calculou cerca de cinquenta pessoas a seguirem Jesualdo. O que quereria dizer que esta história se arrastaria até finais de dois mil e dez... Quem a imagem não mostra (por absoluta falta de espaço) são as faces ocultas de Eunice*, Lídia** e Alípio** (entre outras faces ocultas de outras histórias não ficcionadas), que se encontram, respectivamente, nas décima, décima primeira e décima segunda arcadas, a seguirem-se entre si.
*Eunice, esposa de Jesualdo (para quem começou agora a ler a história) foi naturalmente convidada mas "escusou-se" argumentando cansaço pela viagem a Freixo-de-Espada-Curva, onde esteve na noite de Halloween a distribuir chicletes e mordeduras. Está feita uma seguidora nata.** Lídia e Alípio são mais para os queques e bolos-de-arroz .

Continuamos, não é verdade?

2009. Foto e texto de Alberto Oliveira.