Thursday, July 14, 2011

OS FALSOS CEGOS

Foi o primo Francisco que fez correr a notícia pela família; no Largo de Sapadores surpreendera Aniceto de óculos fumados e tacteando com uma bengala branca, bordos de passeios, postes de candeeiros, veículos estacionados onde os peões deviam transitar, uma desculpa balbuciada para o éter por via de um encontrão em alguém apressado com quem se cruzara e -- espanto dos espantos!, a ser ajudado a atravessar a rua para apanhar o 28 a caminho do emprego na baixa lisboeta, por um guarda-republicano disponível. Francisco estivera com Aniceto no dia anterior e, por sinal, tinha pedido ao primo para este lhe tirar um grão de pó que se alojara no seu olho direito. A intervenção realizara-se com êxito (Aniceto era reconhecido e reclamado pelo seu fantástico golpe de vista) e com a rapidez desejada. Dizem os manuais da complexa estrutura humana (excepção feita para os que nascem invisuais) que para ser cego, é condição básica que, pelo menos se tenha apaixonado à primeira vista por três vezes consecutivas e consiga distinguir a olho nu, uma agência de rating de uma agência de viagens transcontinentais. Sabendo Francisco que Aniceto se casara com uma jovem que namorara desde o infantário e que muitas coisas da vida lhe passavam ao lado porque na realidade o que de facto o interessava era o emprego numa agência de seguros de riscos calculados, aquilo que os seus olhos tinham testemunhado, mais parecia ter saído de uma obra de ficção

"Avenida António Augusto de Aguiar. Semáforos à esquerda, com sinal sonoro na passagem de peões. Para a esquerda, segue para Sete Rios, a 350 metros. Para a direita, segue na direcção do Marquês de Pombal.
-- Obrigado, Célia."

escrita por um sujeito dado às letras que nunca precisou de usar óculos e que para se entranhar na pele do personagem, ensaiava cerrando os olhos, o cego que não era, na Rua da Bela Vista à Graça previamente preenchida com figurantes "cegos, daqueles que fingem nada querem ver", passeando o ar da sua graça e observando onde paravam as modas.

"Avenida António Augusto de Aguiar atravessada. Caminhe no passeio para a direita três metros. Vire à esquerda, Rua Augusto dos Santos, caminhe a descer cerca de 50 metros. Largo de São Sebastião da Pedreira, Igreja de São Sebastião é à sua frente. Há dois lanços de escadas, à esquerda e direita.
-- Parabéns, Célia!"

de modas não foram os membros da família de Francisco; riram-se-lhe na cara. Melhor fazia se fosse ao oftalmologista e deixasse de usar de vez, aqueles espalhafatosos óculos espelhados, que eram a causa (segundo ele) de confundir, não raras vezes, a atractiva jovem vizinha do lado, com a sua balzaquiana esposa.

"A máquina não respondeu, mas António pensou que os parabéns também eram para si, e que a vaidade pessoal, com todos os seus problemas, por vezes faz avançar o mundo. Desligou o GPS. A bateria necessitava de oito horas de carregamento nessa noite, ou ficaria viciada."

Francisco estava a um passo de deixar de acreditar naquilo que os seus olhos julgavam ver: ramos de árvores azuis, cães verdes, a mulher de vermelho do seu melhor amigo com promessas no olhar, a sua conta bancária que crescia a olhos vistos ou um divinal arroz de tamboril quase de borla, num dos melhores restaurantes de Lisboa com vista para o Tejo.

"António levantou-se e saiu da igreja. Lá fora começava a crescer a densidade da atmosfera. O ar sujo arranhava a garganta. Ele próprio, pelo minúsculo buraco de luz que lhe sobrava no canto superior do olho esquerdo, uma espécie de túnel de minhoca entupido e amarelado, o último resto daquilo que aconteceu naquele dia, sentiu que Lisboa escurecia a grande velocidade."

Noite feita e feia de Inverno e um pouco antes do eléctrico chegar à Sé, Aniceto levou o polegar e o indicador da mão direita à órbita ocular esquerda e, rolando os dedos, retirou da cavidade um olho em lastimável estado. Repetiu a operação à vista direita e também esse olho não estava em melhores condições que o primeiro. Com as duas pequenas esfera viscosas na palma da mão, voltou a cabeça para a mulher que se sentava a seu lado «Não se importa de segurar nestes enquanto coloco os novos que são azuis e estão na garantia?»



2011. Texto de Alberto Oliveira. A bold, excertos do livro "Deixem passar o homem invisível" de Rui Cardoso Martins.










19 Comments:

Blogger Rui said...

- e eu que pensava que já tinha visto tudo... - disse a mulher do lado, sem conseguir tirar os olhos dos olhos que equilibrava na palma da mão.
- curioso - respondeu o fulano da vista desarmada, tentando acertar com o primeiro olho no respetivo orifício -, aqui há um tempo, também eu pensava que já tinha visto tudo, quando ceguei. mas depois leram-me um livro, O Segredo, não sei se já ouviu falar!? e descobri que basta o poder da mente, querer muito uma coisa, para se ter tudo o que se deseja.
- assim à vista desarmada, essas coisas que está a tentar enfiar nas vistas não parecem grade coisa, no que ao objetivo de ver diz respeito.
- está visto que não enganam ninguém... - disse ele, entristecido.
- está bem de ver que esses... essas... coisas, não servem para ver.
- também não é tanto assim, e até têm uma vantagem: servem para me enganar, com elas, só vejo o que quero.
- está visto que o senhor é algarvio.
- como é que adivinhou? - perguntou ele visivelmente espantado.
- só podia ser de Olhão.

15/7/11 10:47  
Blogger Teresa Durães said...

gaita, ando mesmno a precisar de uns olhos desses!!

16/7/11 19:35  
Blogger via said...

é talvez uma questão de ter olhos, ou não, na cara...

22/7/11 11:00  
Blogger tb said...

grande troca de olhos...
Até que enfim posso entrar nesta caixa de comentários. Devia ter trocado de olhos recentemente. Os outros não viam a caixa. :)
Adoro estes escritos e depois ler "as adendas" do Rui. :)
beijinhos

23/7/11 16:05  
Blogger Lyra said...

"Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos. Enquanto o amor passa, a amizade volta, mesmo depois de ter adormecido um certo tempo."

Já tinha saudades.
Beijinhos e até breve!

Lyra ;)

6/8/11 16:07  
Blogger bettips said...

Realmente
verdadeira a mente
há que tempões não sorria na tua prosa curvilínea, tipo mota numa rotunda (e ele há tantas, rotundas e metas).
De tempos a tempos passo, passo-me, passo aqui, aliás. Feliz em te ver.
Um abraço em recta.

13/8/11 18:04  
Blogger bettips said...

...ou reta? eu não disse nem sim nem não ao acordo, nem ao ortográfico.

13/8/11 18:05  
Blogger Lóri said...

Meu querido escrivão, eu não estava cega, pois tenho olhos na cara, nem parva, pois ainda uso un 5% dos meus quase falidos neurônios, mas não havia não caixa de comentários até há um tempo atrás... fiquei nada dúvida sobre essa expressão, adjunto adverbial quase improvável, "até há um tempo atrás", mas tenho pressa e vontade de deixar-te um humilde comentário.

já tava cheia de saudade destes textos... Ai que bom fica agora este fim de verão.

Beijocas coolor de toro

26/8/11 10:24  
Blogger Menina Marota said...

Passo por aqui a ler-te (claro que não é todos os dias eheheh)algumas vezes e apesar de não deixar rasto da minha passagem vou admirando o teu fino sentido de humor que não perdeste e ainda bem.
Hoje apeteceu-me dizer Olá até porque o Verão parece que já acabou e o Outono já se faz sentir. E a mim o Outono dá-me para escrever! :-)

Um abraço e se for caso disso, continuação de boas férias.

5/9/11 15:37  
Blogger Alien8 said...

Ora ainda bem que por aqui passei!

Um abraço, Legível! Ou dois.

9/9/11 19:15  
Blogger inominável said...

é pá.... venho a esta caixa de comentários e encontro uma Lóri que já não "via" há muito tempo (preciso de trocar de olhos ou de olhar!!!)... Deixei-te uma adivinha como resposta lá no meu cantito pouco nomeável...

E escrevo uns momentos indefinidos antes da família (voltar a) alargar!!!!

E quando vieres a Berlin, aproveita para dar um toque virtual, para eu não ter que voltar a chatear-me, ouqei?

14/9/11 09:11  
Blogger Alberto Oliveira said...

Este texto está muito bom, pá! Abraço.

17/9/11 09:44  
Blogger Alberto Oliveira said...

Mas tu não tens vergonha nessa cara?! A escrever comentários elogiosos a ti próprio?

17/9/11 09:47  
Blogger Alberto Oliveira said...

Vergonha?! Vergonha de quê? de dizer aquilo que penso? era o que me faltava, ter à perna um moralista ideólogo!

17/9/11 09:52  
Blogger Alberto Oliveira said...

Já percebi que o melhor é ficarmos por aqui, que tu não tens cabedal para aceitar uma crítica. Atiras-te logo -- como gato a bofe, a qualquer coitado que, cheio de boas intenções, passe por aqui a deixar umas letras amigáveis.

17/9/11 09:57  
Blogger Alberto Oliveira said...

... amigáveis?! desse género de amizade até a onça deve ter cuidado contigo...
Tem um bom sábado e... tento na escrita.

17/9/11 10:00  
Blogger Há.dias.assim said...

mudei de lentes à pouco, mas preciso de uns olhos assim... ou umas lentes :)

2/10/11 18:05  
Blogger L.Reis said...

Ora bem... está visto que em terras de faz-de-conta quem pode trocar de olhos, não será rei (que isso agora também não é lá grande coisa) mas poderá muito bem ser...sei lá...um desses gestores das contas alheias, bem instalado nos sobressaltos deste mundo em penúria. eu fico-me com os olhinhos que deus me deu, mas pergunto-me se posso trocar de canal auditivo e mesmo de nariz...é que anda um cheiro nauseabundo nos ares e os sons das vozes que chegam faz-me, muitas vezes, pensar que o nosso maior martírio é toda a gente achar que tem alguma coisa para dizer (sempre com a autoridade e convicção de que o que diz é vital para a rotação da Terra...) Está visto que estou neura...graças ao Senhor que o Francisco me ajudou a tirar os olhinhos da chuva em jeito de desabafo :D:D

16/10/11 23:19  
Blogger Unknown said...

thank you

سعودي اوتو


1/6/15 12:43  

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