Monday, October 30, 2006

A COISA
















Antes, pareceu-lhe um prosaico marco de correio. Mas quando se lhe chegou ao pé, tirou daí o sentido. Pois se nem uma abertura para recepcionar as missivas para o seu interior possuia... Era sólido e aparentemente inexpugnável; sondar-lhe as entranhas, descobrir os segredos que guardava no seu âmago não seria tarefa fácil para qualquer um. Cirandou à sua volta por duas vezes -assim como quem não quer a coisa e para não passar por patego, assobiando para o ar. Da cilíndrica peça urbana, a relevância situava-se numa espécie de escudo omisso de qualquer outra simbologia que não fosse a cruz . Desistiu de mais raciocínios e ao primeiro passante que filou, indagou se sabia do significado -ou préstimo de tal objecto. Teve sorte porque se tratava de um entendido das coisas do urbanismo. "que o referido objecto não era mais do que uma coisa de que as mais importantes cidades do país se orgulhavam em possuir; exactamente isso. Uma coisa", acrescentou convicto.
Milão, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, October 26, 2006

DO TEMPO QUE JÁ FOI

















O rapaz de boné azul parou, virou o torso e os seus olhos ficaram a acompanhar a trajectória das duas jovens que se tinham cruzado com ele. Uma delas, a de óculos, tinha sorrido a uma frase que ele lhes lançou na altura. Não me perguntem o que ele lhes disse que a minha posição -algo distante em relação à cena, não me permitia ouvir as conversas das pessoas na rua; apenas a amálgama indistinta dos sons da grande cidade chegava até mim. As jovens não se chegaram a cruzar com o rapaz de polo cor-de-salmão, cuja atenção estava desperta para algo que a imagem não documenta e que eu não descrevo pois se poderia perfeitamente imaginar que de ficção se tratasse. Fiquemo-nos então pela realidade da foto. Também nela, o casal à esquerda em primeiro plano, de mão-dada e sorrindo, pretendia caminhar na minha direcção. Escrevo "pretendia caminhar" e não me engano; numa fotografia, as pessoas não têm vida própria. Ficam ali para todo o sempre, prisioneiras das nossas memórias, da nossa imaginação e por vezes até da nossa manipulação. Todos os intérpretes desta cena fotografada estão nessa condição e nada poderão fazer para dela se libertarem. Tão pouco, posso voltar atrás no tempo, não ter tirado a fotografia e tê-los deixado irem à sua vida naquele momento. Se a memória (e a visão) não me atraiçoa, creio ter percebido um gesto de inquietação na face do homem do casal da direita, também em primeiro plano. Daí, ter quase puxado a mulher para tentarem sair a tempo da imagem. Impossível de todo; disparei um segundo antes...
Barcelona, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Wednesday, October 18, 2006

DO COMPLEXO NEXO das FÁBULAS


Em tempos que já se perderam na poeira dos ditos, um homem e uma mulher vindos não se sabe muito bem de onde, montaram arraiais no largo da pequena povoação de Riostoka e chamaram a atenção dos seus espantados habitantes não só pelo extravagante trajar mas também pela sua postura corporal. Abrigando-se da chuva miuda que teimosamente não cessava de cair, sob o telheiro do minúsculo mercado da terra, mantiveram-se -para mais e não para menos, seis horas seguidas de pé, quedos, mudos e de olhos fixos na casa em frente onde morava o presidente da junta de freguesia. Ela segurava na mão direita um enorme e belo exemplar de uma pescada-verde-alvaláxia -peixe raríssimo por aqueles lugares e naquela altura do ano. Ele exibia uma rede-apanha-borboletas-distraidas em cujo aro se equilibrava um pombo-correio-azul. De repente e sem que nada o fizesse prever, os atónitos habitantes ouviram o pombo-correio-azul falar. «O presidente da junta de freguesia deste lugar, apenas dá emprego aos familiares, amigos e membros do seu partido. Acham isto justo?!». Ainda o sinal de interrogação pairava no ar e já a pescada-verde-alvaláxia atacava «O presidente da junta de freguesia deste lugar utiliza os dinheiros públicos -o vosso dinheiro!, em acções que nada têm a ver com as necessidades reais da vossa terra. Manda editar livros de versos de pé-quebrado dos amigos do peito, que custam um balúrdio, mas as ruas de Riostoka permanecem esburacadas há um ror de anos. Acham isto justo?!». Sem deixar que a populaça se recompusesse, voltava à carga o pombo-correio-azul «E as viaturas da junta que são utilizadas para as manifestações e comícios do partido? E o que dizer dos concursos que são sempre ganhos pelos... ». Não disse mais o pombo-correio-azul porque da porta onde morava o presidente da junta de freguesia, saiu um dinossauro grande, gordo e de farto cabelo negro que deitando chamas pelos olhos berrou «CHEGA!! Quem manda aqui sou eu! Eu... e o povo que me ama e por isso vota em mim, benza-o deus; e há muitos anos por sinal. E o povo nunca se engana!!» E deixou uma garra a pairar no ar a apontar ameaçadora para o grupo fabulista. O povo comovido, aplaudiu de pé (que era a posição em que se encontrava desde o início da função) o dinossauro e expulsou da povoação o homem, a mulher, o pombo e a pescada; que persistentes foram pregar para outra freguesia...
Barcelona, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Sunday, October 15, 2006

ESTAR OU NÃO ESTAR
















Alquebrado, olhar permanentemente em guarda, voz trémula mas com o manuscristo tenazmente agarrado junto ao peito, encontrei-o um destes dias ali para os lados do Areeiro. Pela direcção que tomava, bem poderia dirigir-se ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social, quem sabe se para resolver algum problema laboral. Bem arranjado estava, que sairia de lá com uma mão atrás e outra à frente. E na actividade que desenvolvia não seria mais aconselhável tomar o caminho da Sociedade Portuguesa de Autores? E porque não a Polícia Judiciária? ou o provedor das artes & ofícios... E em desespero de causa bem se podia queixar ao Totta. Depressa a minha febril imaginação afastou este cenário e já o via a transpor a porta da Casa do Artista sendo recebido pelo soldado da guerra de 14 e por algumas gentis senhoras desdentadas no auge da carreira reformatória.
Tirou-me as dúvidas que tinha, numa resposta algo teatral mas a que dei o devido desconto, pois um inglês sem hesitações e fora de casa, não é maçã fácil de roer. Que não, "que a sua produção mantinha os níveis habituais, as peças representavam-se bem, a afluência do público era extraordiária, que a população tinha um nível de escolaridade muito bom, era exigente e para isso decerto estavam a contribuir com um trabalho de base feito sem quaisquer contrapartidas de excepção todos os agentes sociais. À classe política, pilar desta sociedade democrática, agradecia penhorado o prazer de aqui permanecer. Stratford upon Avon tinha ficado há muito para trás e estava mesmo decidido a fazer como Deco e Obiqwelu: naturalizar-se... " . Depois "recomporia a máscara facial e corporal; sorriso nos lábios, olhar despido de apreensões e tronco direito que nem um fuso", acrescentou.
Budapeste, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, October 12, 2006

O MEU AMIGO WOLFGANG A.
















Tínhamos aprazado o encontro para uma praçazinha simpática e deslocada do bulício do centro da cidade. Ambos sabíamos que por esta altura do ano os festivais de música traziam milhares de forasteiros à grande urbe e Wolfgang confessou-me na breve conversa que mantivemos por telefone móvel -uma invenção diabólica segundo ele, que temia ser reconhecido no meio da multidão por A. Salieri. Tentei sossegá-lo afiançando-lhe que o seu rival estava bem morto e enterrado mas isso não o aquietou. Para meu espanto, informou-me que viu um espectáculo de magia, numa sala completamente às escuras, de um tal Milos Forman e que o enredo não o tinha deixado nada animado.
Tive algum receio que, depois de tantos anos não o reconhecesse com facilidade. Na realidade, a única fotografia que tinha dele, datava da altura em que teríamos entre os seis e os oito anos. Numa rua de terra batida via-se em primeiro plano o Bastos B. a rematar uma bola de trapos contra um indefeso guarda-redes de joelhos esfolados que era eu. Nas minhas costas, alheio ao jogo, Wolfgang tocava violino. Nas voltas da vida a última vez que nos falámos, foi na vã tentativa de lhe encomendar (a preço de amigo, claro!) um hino para a Associação Cultural e Recreativa os Amigos de Afrodite. Recusou, invocando uma viagem à Casa da Música no Porto.
Afinal os meus receios não tinham razão de ser. Ali estava ele, e no rosto liam-se a dois tempos, uma aparente serenidade e o olhar distante do virtuoso. O pessoal do marketing desta terra não deixa os créditos por mãos alheias...
Viena, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Monday, October 09, 2006

CONCERTO em SI
















As pontas dos dedos dela percorrem com desvelo as teclas de um piano que provavelmente conheceu tempos mais favoráveis que estes que hoje passam, num andantino grazioso que apenas se faz ouvir em condições razoáveis a quem permaneça não mais longe que uns vinte metros da pianista. Schumann não se consegue sobrepor às vozes da multidão acantonada na praça nem essa será a intenção; a cada um a sua música, é a sua divisa, pois sabe por experiência própria, por amor à arte e à arte da sobrevivência que as notas musicais que toca nunca se confundirão com as da musicalidade turística que se vocalizam em registos tão diversos que dificilmente se descobrirão os seus intérpretes.
Enquanto a chuva que se adivinha não afastar os últimos turistas da esplanada, ela continuará a tocar (com desvelo) os compositores que ama e que lhe alimentaram o sonho de uma carreira que não se concretizou à medida dos seus desejos. Não os condena nem se sente traida. Por isso, todos os dias faz a viagem Veneza-Mestre num combóio onde já não há lugar para qualquer sopro de esperança; apenas para o anonimato diário. E volta. Ao lugar da música.
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Hoje, por mais que tentasse, não consegui pintar o toque final irónico que tanto prezo nas escrevinhaduras que por aqui vou deixando; aponto o dedo (e a culpa... que não sou pianista) a Schumann, que escutava enquanto escrevia este texto, num Concerto para Piano em Lá menor, Op 54. Na próxima ouvirei Mozart e, quem sabe, escreva de Florença...
Veneza, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Friday, October 06, 2006

NÃO DESCUBRA as DIFERENÇAS...




















... que a disponibilidade dos actores improvisados entre o primeiro e o segundo disparo da máquina fotográfica foi total. Mantiveram os sorrisos e os adeuses conforme o que rezava o guião. O toldo da embarcação continuou azul e a água do rio não passou do estado líquido ao sólido por qualquer efeito especial fora do contexto. Depois o barco desapareceu sob a velha ponte carregada de história, sinal que as filmagens tinham chegado ao fim. O espectáculo estreou-se hoje neste espaço-blog, próximo de si.
Ljubljana, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Tuesday, October 03, 2006

NO REINO da DINAMARCA

















Se havia coisa que Gustavo não gostava era que lhe tentassem vender gato por lebre ou pombo por faisão. Ficasse ele de pé atrás com a fartura da oferta ou o exagero dos salamaleques não descansava enquanto não se pusesse em campo e tirasse a limpo o que lhe parecia trazer água no bico. Não que fosse desconfiado. Mas a vida já lhe tinha ensinado tanto que, a olho nú, conseguia num ápice distinguir a diferença entre um mentiroso e um coxo, exercício mental que exigia vastos conhecimentos algébricos e que nos seus tempos de jovem nunca se dera ao trabalho de praticar por manifesta falta de tempo, preenchido com outros exercícios bem mais apetecíveis ao palato e... ao corpo.
Dessa vez o caso nem tinha aspectos de gravidade por aí além, pois não ofendia ninguém na pele nem na honra. Aconteceu que o Carrilho -aldrabão reconhecido e convicto mas que ninguém tinha a coragem de pôr em causa, andou uns tempos sumido da vista das gentes da freguesia. E quando se tornou visível, anunciou ter regressado de fresco de uma viagem -no mínimo fantástica! às terras escandinavas da fartura económica e do nosso desespero. Quando chegou ao ponto de afirmar que a rainha concedia audiências de peito a descoberto, Gustavo afinou. Se os outros boquiabertos por tais notícias se babavam, ele sentiu-se ludibriado e jurou que havia de encetar igual viagem e desmascarar o impostor.
Foi e regressou derrotado. Na verdade, a rainha trajava?! em tais preparos e o rei não lhe ficava atrás. Menos o staff real; que esses tinham um receio danado da gripe... das aves.
Barcelona 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.