Monday, February 27, 2006

GOLPE MORTÍFERO



















Eu estava lá e vi com estes que a terra há-de comer. Primeiro, ouvi o tri-nó-ni sincopado do cento e doze a subir de tom e na ganga a pedonal Augusta. Depois, a viatura estacou mesmo ao lado da instituição bancária que assinala o final de tão emblemática rua lisboeta e dá lugar a outro -não menos importante, espaço urbano de eleição dos lisboetas: o Rossio. Do seu interior, sairam em passo de corrida, dois homens que se dirigiram à mulher que vendia castanhas. Não é meu hábito, juntar-me ao magote dos que fazem da desgraça dos outros, um dos seus espectáculos preferidos. Mas se naquele momento, das pessoas que por ali circulavam, nenhuma se disponibilizou para se aproximar, porque não (e apenas por uma vez!), quebrar tão salutar costume?! Não era de facto, coisa bonita de se ver. Com um golpe profundo de lado-a-lado, a meio do corpo, um simpático e jovem fruto de castanheiro, debatia-se no estertor da morte. Um dos paramédicos encolheu os ombros e disse lacónico «Coitado. Mais um que não vai viajar de TGV em Portugal... »
Eu estava lá e vi. Foi este domingo de Carnaval. Frio, de céu cinzento, chuvoso e sem máscaras à vista desarmada. Por isso, coloquei os óculos e fui-me à vida.
Foto de : Alberto Oliveira.

Friday, February 24, 2006

A FELICIDADE TEM ROSTO



















Das jovens que julgou estarem no atendimento -porque na maioria das lojas de pronto-a-vestir das grandes superfícies, democraticamente os trabalhadores confundem-se com a clientela numa onda de grande empatia... , dirigiu-se àquela sem uma razão justificada, embora reconhecesse mais tarde que não uma, mas muitas razões, o levaram a preferi-la. Logo, porque deixou de recordar-se de imediato, se eram calças, t-shirts ou blusões o motivo que o fez entrar naquele estabelecimento. Depois, porque os olhos da rapariga, de um azul fantástico, fitavam-no de tal modo, que seria impossível de todo, proferir palavra. Finalmente, porque como por magia, os clientes que enchiam a loja naquele sábado de saldos, as vozes entusiásticas de fim-de-semana, os artigos remexidos a esmo ou aqueles ainda alinhados nos expositores, desapareceram. Até a grande superfície levou sumiço... Apenas ele e ela, num espaço sem nome nem nexo; porque a paixão não precisa de definições ou de arquitectos.
Para gáudio daqueles (e daquelas e daquelas... ) que se pelam por finais felizes, em detrimento dos outros cinzentões ou intelectualóides por difíceis de decifrar, casaram. E tiveram muitos filhos. Que de tão perfeitos, se mostram (para orgulho dos pais!) em montras de lojas de roupa para crianças. Porque a paixão por manequins é estranhamente complexa...
Foto de: Alberto Oliveira.

Wednesday, February 22, 2006

DAR TEMPO ao TEMPO



















TEMPUS

O tempo tenho-o todo,
o deste mundo;
e se de algum modo,
o gasto num segundo,
sobram-me horas de arrependimento.
São o saldo de um movimento bancário
de risos e descontentamento,
de tempo tão imenso e tão precário.

............................................................................................

Vasconcelos olhou outra vez o relógio do painel do carro. Nervoso, acendeu mais um cigarro. À sua frente, a fila de veículos à entrada do tabuleiro da Ponte, não se movia um milímetro. Do interior do Punto azul à sua direita, escapava-se a voz de Phill Collins "Well I remember, I remember don´t worry/How could I ever forget... " e uma rapariga loira abanava a cabeça ao ritmo da música. "Que azar!" Porque não se enfiou na Vasco da Gama, assim que percebeu que a manhã estava a dar para o torto? Mentalmente, pôs-se a adivinhar as bocas que o esperavam quando chegasse ao Cemitério da Ajuda; "Sempre atrasado" que "nunca conseguira cumprir um horário"...
... até no dia do seu funeral.
Foto de : Alberto Oliveira.

Saturday, February 18, 2006

O MUNDO a SEUS PÉS (the end)



















Entrou na sapataria resoluta e senhorial. Uma das empregadas dirigiu-se-lhe de imediato «Boa tarde. Posso ajudar a senhora?». Adozinda G. -era esta a sua graça, sentou-se cruzando as pernas e com um olhar distante respondeu quase agreste «Pode ter a certeza que sim! que não me satisfaço com o primeiro par de sapatos que me quiser impingir... ». Era a primeira vez que entrava naquela loja e por isso quis logo marcar posição; seria ela que controlaria as operações e para isso teria todo o tempo do mundo, porque todos os meses tirava um dia para ver sapatos .
Meia-hora mais tarde, as caixas de sapatos experimentados por Adozinda G., amontoavam-se em seu redor. Dos pares que calçou até então, dois ou três nem lhe ficavam nada mal, mas não o admitiu à empregada que a atendia; tinha estabelecido há muito, que cada uma destas visitas durariam pelo menos uma hora, de contrário lá se ia o prazer... Quando calçou o décimo oitavo par e se ergueu para se dirigir ao espelho, reparou casualmente, num homem sentado em frente e que a olhava insistentemente. Também ele tinha um grande número de caixas e sapatos próximos de si e... tinha muito bom aspecto! "Duas almas gémeas, porque com a mesma paixão pelas sapatarias... ", pensou ela.
Deodato -pois era dele que se tratava, percebeu o olhar avaliador de Adozinda. Impetuoso, venceu num ápice a distância que o separava dela e disse-lhe arrebatado «Eu sabia que um dia destes, os nossos olhares se iriam encontrar, minha jóia das sapatarias !». «Mas quem é você?! não o conheço de nenhum lado!» replicou ela, simulando enorme susto. «Ora, ora. Então não me conhece?! Eu sou o Deodato, aquele que interpretou o papel principal no post anterior a este!» redarguiu ele. Não cairam nos braços um do outro. Não casaram nem tiveram muitos meninos. Não foram felizes para sempre. Que no virtual, as coisas não são assim, tão lineares...
Foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, February 16, 2006

O MUNDO a SEUS PÉS (Parte Um)



















Um dos maiores prazeres de Deodato, é o de entrar nas sapatarias. A maioria das vezes, experimenta cinco ou seis pares de sapatos e após isso, conclui, com ar de contrariedade (que representa sem esforço), perante o empregado solícito que «Os níveis de conforto que pretendo, não correspondem às minhas expectativas e a relação qualidade-preço, deixa bastante a desejar. Nada feito meu amigo!» Antes, ao entrar, pede calçado um número abaixo, do que de facto calça. É um dos truques que mais utiliza para ganhar tempo. Afirma convicto, que não entra numa sapataria para gozar deliberadamente com quem trabalha; e reforça: isso que fique bem claro!
Filosóficamente, diz para quem o quer ouvir, que "estas lojas têm um encanto muito próprio, porque as pessoas que aqui se encontram, tem modos de agir muito interessantes e fora do comum", daí a sua apetência por permanecer o máximo de tempo possível, observando-as, explica. É para elas que centra todas as suas atenções e cada vez se espanta mais com o que vê e ouve. Tem um roteiro completíssimo (e actualizado... ), de todas as sapatarias na área da Grande Lisboa e um esquema de visitas organizadas, de modo a não as repetir num curto espaço de tempo... Ficou-lhe de memória, a memória de elefante de um empregado de uma sapataria da Almirante Reis (que Deodato confundiu com outra na Morais Soares) ...
Numa fiada de lojas diversas, Deodato entra de olhos fechados naquela que é uma sapataria; o odor dos desodorizantes aéreos, para anular os que emanam dos pés da clientela mais avessa à água, é característico e indisfarçavel. Louva a coragem e a humildade dos que trabalham neste ramo, quase sempre em condições adversas, diariamente acocorados, qual posição de vassalagem perante chispes & presuntos , uns mais nobres que outros, mas todos (ou quase) republicanos. Afiança por tudo, que faz todos os possíveis (não fala em "impossíveis"... ) para não se sentar em frente a uma senhora de saia mais curta que o habitual. Se isso acontece, desvia candidamente os olhos, e canta em surdina "A Portuguesa" .
Foto de: Alberto Oliveira.

Monday, February 13, 2006

INQUIETAÇÃO



















Só o vi quando estava mesmo a passar em frente à montra da loja de lingerie. Era um sujeito de meia-idade sem características especiais que o distinguissem de outros sujeitos de meia-idade. Apontava uma máquina fotográfica, sem qualquer dúvida para o manequim de roupa interior vermelha e disparava vezes sem conta. Entre cada disparo, puxava de um caderno minúsculo e apontava qualquer coisa rapidamente. Algumas mulheres que paravam por momentos, olhando o interior da montra, olhavam-no também, curiosas; mas seguiam depois o seu caminho. Ele nem parecia dar pelas pessoas, de tão absorvido se mostrava nos seus movimentos; fotografava e escrevia no pequeno caderno, fotografava e escrevia no pequeno caderno. Intrigado, segui-lhe discretamente os gestos a pouca distância e notei-lhe, de cada vez que escrevia, que uma ruga se cavava na sua testa. Contei seguramente umas trinta fotografias, outros tantos registos... e igual número de rugas onde se lia alguma inquietação. Finalmente, guardou a máquina numa bolsa e a seguir, pareceu-me ler tudo o que tinha escrito. Um sorriso rasgou-lhe o rosto.
Não me contive. "Que não me levasse a mal, mas tinha estado a observá-lo, achei curioso e fora do comum o seu labor perante um mero manequim de montra e..." Interrompeu-me afável e explicou calmamente enquanto guardava o pequeno caderno no bolso do casaco «Estive a fotografar um poema de amor que há muito imaginei ter escrito. Faltava-me apenas o corpo feminino; encontrei-o hoje, aqui, na rua Augusta»
Foto de : Alberto Oliveira.

Friday, February 10, 2006

Ó de ESPANTO



















« Oh! » exclamou a minha mais-que-tudo, alongando a vista para o verdejante e atractivo relvado, que convive paredes-meias com as mansas e envolventes águas dum Tejo, não menos desafiador dos sentidos das almas predestinadas a idílicos amores. «Ó o quê?!» fiz-me de novas, porque lhe conheço os intempestivos desejos sem hora marcada ou local certo. «Já reparaste que sítio tão... tão romântico? que até árvores tem... e dentro da cidade! Quem diria... Não achas extraordinário?!» tremia-lhe a voz emocionada. Os meus piores receios começaram a ganhar contornos definidos. «Mas não tem bancos» atalhei depreciativo e a preparar-me mentalmente para uma dura batalha verbal. Riu-se com gosto «Mas Lé, para que precisamos dos bancos?! Deitamo-nos na relva e... namoramos um bocadinho.
Detesto quando ela me chama Lé em público e de modo bem audível, jeito que lhe restou do escasso tempo que estudou as artes do palco. Dois gajos que passavam, olharam-me surpresos e interrogadores. Na verdade não é nome de homem... nem de bicho, imagino eu. E aquele espaço nada tem a ver com a imagem acima editada. É aquilo a que se chama uma ilusão de óptica... boa para folhetos turísticos, porque observado em contacto directo, está imundo; são restos de comer, latas de cerveja vazias, dejectos de cão, urina de gato e seringas usadas. Mais: o rio tem uma cor cinzento-amarelado e as árvores são raquíticas e de origem suspeita. Mas a fisionomia da minha-mais-que-tudo revela-me que está decidida a tudo e que aos meus estruturados argumentos, retorquirá que "sou um monstro que já não a amo como antigamente... "
Dou-lhe a mão, ajudando-a a transpor o separador entre o passeio e o descampado; beijamo-nos apaixonadamente e vamos deixando cair peças de roupa pelo caminho até mergulhármos na lixeira. A polícia apareceu dez minutos depois...
Foto de : Alberto Oliveira.

Monday, February 06, 2006

NAS ALTURAS



















Desculpava-se com imaginárias vertigens, para o costumeiro hábito de não olhar para as alturas (é sabido que tais tonturas, não acontecem somente quando os nosso olhos descem para os abismos reais ou fictícios que nos cercam... ) e reconhecia que esse seu comodismo -que assim se designe para não sermos acusados de penetrar, sem convite, nos domínios do privado mental de Deodato, comportava alguns custos.
Os relatos das suas viagens eram célebres e alvo de grande gozo por parte de amigos e conhecidos porque descritos na horizontal. Do Empire State Building conheceu a entrada; em Pisa, da Torre não confirmou a inclinação que se lhe atribuia. E no seu dia-a-dia as coisas também não se afirmavam pacíficas; na Companhia onde trabalhava, convidaram-no para integrar uma equipa de basquetebol; que não, obrigado; se ainda fosse de futsal... E que não lhe pedissem para retirar um livro de uma estante mais elevada que a sua própria altura...
Ontem, ao descer a Rua do Carmo, o impensável aconteceu. Não nos vamos deter na explicação de tal desígnio que este não é o momento nem o espaço certo para tal. Sem saber ler nem escrever, Deodato ergueu os olhos para o ar e para além da estrutura de ferro fundido do elevador de Santa Justa e do cimento do imóvel paralelo, descobriu pedaços de céu azul sem mácula. Sorriu satisfeito. Raoul Mesnier seria um aprendiz ; mas quarenta e cinco metros de altura, valem o que valem. E Gustave Eiffel e o seu engenho, em Paris, estavam vingados...
Foto de: Alberto Oliveira.

Saturday, February 04, 2006

MEMORANDUM



















Estava uma manhã de sol mas muito fria; tão fria como outras manhãs de outros Invernos mas que continuamos a garantir que não temos memória de um frio assim, tão intenso... Talvez a memória curta seja o álibi para um início de conversa com o vizinho do lado no transporte, num diálogo onde podem perfeitamente caber as últimas sobre o horrendo crime da jovem assassinada na flor da idade e violada depois de morta, a neve que caiu na zona da Grande Lisboa ou o cataclismo verde que se abateu sobre a Luz.
Estava frio, sim senhor, mas nada que não se suportasse. Estranhei, isso sim, que naquele local, a cidade estivesse tão desafogada de gente e quando os ponteiros do relógio caminhavam céleres para o meio-dia... No Largo da Misericórdia, apenas um grupo de homens que pelo aspecto, gozavam os desfavores da magra reforma, jogavam às cartas de caras fechadas. No alfarrabista nem vivalma e na tasca da esquina, uma mulher de idade indefinida e pobremente vestida, encostada ao balcão e próxima da porta, olhava sonhadora para a fila de garrafas de vinho, alinhadas numa prateleira, enquanto bebia um café.
Prosseguia o meu percurso, quando um sujeito atravessou a rua na minha direcção e me perguntou se «Estarei no caminho certo para a cervejaria Trindade? Sabe por acaso onde fica?» Apontei-lhe um dos veículos estacionados no lado oposto da rua e disse-lhe que «Se olhar para os vidros laterais daquele carro, distingue a cervejaria; no quarteirão logo a seguir à livraria» Agradeceu apressado e foi à sua vida. Ainda me quedei por uns momentos a olhar na direcção do carro que tinha referido ao meu interlocutor; inscrita na parede, a palavra REPÚBLICA fez-me recuar num tempo tão longe que o sentia tão perto. Depois, aconcheguei a gola do sobretudo ao pescoço, desci até ao Chiado e misturei-me com a multidão.
Foto de: Alberto Oliveira.