Monday, August 29, 2005

NO CALOR do VERÃO

É. Tenho este hábito desde que me conheço. O de dialogar comigo. Nada de mais, pois que até é higiénico e adestra a mente. Por vezes, no calor de uma discussão mais apaixonada, distraio-me e as palavras saem cá para fora; em casa ou no exterior. Um amigo -mais corajoso, mas rodeando a questão de algumas cautelas, disse que me viu na rua a "falar sózinho" um destes dias. Reiterou mil desculpas por me tocar no assunto, invocou a amizade de longa data, preocupado com a minha pessoa, pois imaginou de imediato que eu não me encontraria bem, fosse por questões de saúde ou outras.
Agradeci-lhe os cuidados, que não se preocupasse por me ter abordado em "assunto tão delicado" que eu percebia onde ele queria chegar, mas que descansasse que estava tudo bem comigo. Enquanto eu falava, todo ele era atenção às minhas palavras, aos meu gestos, quem sabe na esperança de me apanhar numa frase sem nexo, num olhar demente ou num gesticular indiciando perigo público imediato. Reafirmei-lhe que -à excepção do problema de coluna, a extração recente de um rim e os valores elevados de colesterol, nunca estivera tão bem de saúde; que o casamento, embora tivesse passado por uma ameaça de pré-separação, estava de pedra e cal; que, finalmente, na companhia, as hipóteses de ser promovido nos próximos dez anos tinham ido à viola, mas recebia o vencimento no fim de cada mês.
«Mas tu ias mesmo a falar sózinho, não ias?!» teimou, mas já sem a convicção inicial de quem estaria prestes a partilhar um enorme drama alheio. «Não. Não ia a falar sózinho, ia a falar comigo» respondi calmamente. Um clarão de indisfarçável alegria inundou-lhe o olhar e exclamou, abraçando-me «Bem me queria parecer! Tu estás mesmo tarado!»

Friday, August 26, 2005

IMPREVISIBILIDADE

Não é fácil lidar com o imprevisto. Logo, porque não sabemos quando acontece, depois porque as soluções que dispomos para o defrontar, não são assim tão vastas que abarquem um universo incomensuravel de situações, que essas sim, são por vezes as mais surpreendentes ou inqualificaveis. Vem a introdução a propósito de algo que se passou com uma pessoa conhecida (garanto que se eu fosse o protagonista da história, não teria qualquer problema em assumi-lo por uma questão de lealdade para convosco...) e que pelo insólito do caso, achei por bem aqui relatá-lo.
Rodrigo -chamo-lhe assim, não por qualquer outro motivo senão pela confidencialidade ao nome pedida pelo próprio, é um cidadão comum, trinta e poucos anos, casado, pai de filhos, quadro técnico numa multinacional da área das telecomunicações e com os impostos em dia. Não é associado ou adepto de nenhum clube de futebol, vota no centro esquerda (quando vota e como faz gosto em afirmar) e, se não lhe conheço qualquer tipo de infidelidade conjugal num casamento que vai para dez anos, também tenho de referir que, para alem destes méritos(?!) e por outros não lhe reconhecer, do meu ponto de vista, Rodrigo é o exemplo perfeito e acabado do cidadão anónimo.
Há poucos dias, numa reunião de trabalho, conheceu uma mulher de um desses paises árabes cujo nome não vem à colação, onde o petróleo abunda, os camelos assim-assim e os oásis muito menos. Depois da reunião, encontraram-se para beber um café. Ela disse-lhe que nunca tinha conhecido um homem como Rodrigo; ele certificou-se que não havia mais ninguém próximo deles e beliscou-se. O longo beijo que trocaram não foi um sonho, tão pouco o será a viagem de avião marcada para amanhã, na companhia da sua recente amada que lhe afiançou que há mais sete amigas suas desejosas de se juntarem ao casal.
Rodrigo, trocou duas crianças, a esposa, um trabalho bem remunerado e uma vida sem aparentes sobressaltos por oito mulheres árabes. Tratou assim o imprevisto, sem hesitações. Logo à noite, já tenho assunto para debatermos; eu e a minha-mais-que-tudo...«O que é que tu farias se...?». É assim que começam os nossos debates.

Tuesday, August 23, 2005

NÃO ESQUECER: HOJE FAÇO ANOS

Hoje aniversario. É verdade. Estive vai não vai para não mencionar tal assunto -porque do pessoal privado se trata e porque há sempre quem relegue para plano secundário o miolo do texto própriamente dito, que agora vos escrevo e desate a mandar beijos, abraços e , em última análise, pedir a morada para enviar uma lembrançazinha porque eu mereço, patati patatá. Pensando melhor, porque não?! Primeira razão: não serei eu a inaugurar tal procedimento no virtual; segunda e última: será a única vez que abordo o tema porque eu sei que vocês todos (sem excepção!) se apressarão a registar tão incontornável efeméride.
E se hoje acordei bem disposto! Imaginem que até me passou pela cabeça preparar o pequeno-almoço e surpreender a minha-mais-que-tudo! Claro que depois de algumas tentativas infrutíferas, desisti de procurar mais, o sítio onde se arrumam os pacotes de leite nesta casa. E se até quando observei a torradeira, aquilo me pareceu um demoníaco carro de combate pronto a fazer fogo sobre a minha pacífica pessoa!...Mas se para ganharmos o reino dos céus também contam as boas intenções, não estive nada mal, não lhes parece? Com esta questão colocada a mim próprio e tendo vocês como "testemunhas", a minha consciência descansou.
Ouvi a Mona levantar-se e pouco depois surgir -como é apanágio dela, deslumbrante, na cozinha. Beijou-me calorosamente enquanto eu arrumava uns últimos papeis na pasta e poucos minutos depois chamou-me para a mesa. Relatou-me até á exaustão como ia ser o dia dela, num programa onde o ponto alto era visitar a mãe a meio da tarde. Pelas sete, ia "fazer as unhas" à Odete. Eu estava bastante surpreendido, se querem que vos conte. A minha-mais-que-tudo em dois longuíssimos e gloriosos anos de casados nunca se tinha esquecido do meu aniversário! Porque se fazia tarde, não quis adiar mais a questão; «Não te estás a esquecer de nada querida?» perguntei-lhe com o ar mais inocente deste mundo. Que não fazia ideia do que eu queria dizer, respondeu surpreendida.
«Então a minha amada não se lembra que dia é hoje, ahn? Hoje o seu gato faz aninhos...» ensaiei em tom meloso só para consumo interno, que isto descrito para o exterior até parece mariquice... «Tu fazes anos...hoje?! Olha que tu não deves saber a quantas andas...Se me disseres isso daqui a um mês, vá que não vá...É verdade que já tiraste o gesso; mas quase que me convenço que estás pior da perna e da...cabeça!». Beijei-a em velocidade mas com estilo, desci as escadas a voar, mas desta feita...não parti nada.

Saturday, August 20, 2005

O EXPRESSO do SILÊNCIO

«Muitas vezes, silencio as palavras que esperam ansiosas por serem ditas. Os tempos não estão para grandes discursos, tiradas grandiloquentes, argumentação a propósito para contrapor ou discorrer em voz alta o que nos vai na alma. A síntese, meu caro, está na ordem do dia; de palavras cuidadas, pesadas e repensadas quanto possível, que um equívoco pode ser a morte do artista. Quanto menos palavras se gastarem, melhor, que a verborreia não leva a parte alguma». Casimiro calou-se, colocou um cigarro entre os lábios e acendeu-o. «Mas...e a liberdade de expressão?!» questionei, aproveitando a pausa. Expeliu três círculos de fumo -habilidade que nunca consegui levar à prática, olhou-me de um modo que me pareceu entre a comiseração e o paternalista e respondeu-me : «A liberdade de expressão tem um tempo preciso; usamo-la em tempos de necessidade e depois arrumamo-la em sítio que fique bem à mão. Percebes?»
Levantou-se, sacudiu um resquício de cinza imaginária do casaco de bom corte e acenou-me em jeito de despedida. O motorista do automóvel grande e negro, abriu-lhe a porta traseira e o meu amigo de infância Casimiro, era agora, apenas um vulto escuro dentro do carro que arrancou quase sem se ouvir o ruido do motor. Peguei no telemóvel e liguei para a Catarina «Olá. Não queres vir tomar um café? Óptimo! Preciso de me expressar...urgentemente.»

Wednesday, August 17, 2005

ESCREVER no GESSO

Detesto hospitais, penso que ainda não o tinha referido aqui. Não porque tenha grandes problemas em enfrentar a dor própria ou a dos outros, embora ambas não sejam espectáculos agradáveis. No meu caso, e em situações extremas, a dor não é um espectáculo; chega a ser um recital. Para mim, um hospital é um edifício enorme de arquitectura severa, pintado a branco-deslavado, decorado com um gigantesco H na porta principal, com batalhões de auxiliares de limpeza revezando-se na árdua e continuada tarefa de lavar o chão dos labirínticos corredores, do sangue que pinga regularmente das macas que vão chegando, carregando desgraçados sinistrados dos mais diversos acidentes . As URGÊNCIAS são o grande palco, onde a todos é distribuido um "papel" de maior ou menor relevo, mas em qualquer dos casos, "decorá-lo" leva horas infinitas. Seguem-se depois, os pisos e as salas, de nomes pouco comuns, repletas de seres trajados de branco, manipulando aparelhos complicados e as mais das vezes, brandindo facas e tesouras, retalhando aqui, cortando acolá, corpos que não dão por nada porque anestesiados, alguns "até à última morada". E o cheiro! O cheiro pestilento a desinfectante é a "cereja em cima do bolo"!.
Contrariado, "tornei-me cliente" de um desses detestáveis edifícios quando parti a perna. Voltei lá hoje para a consulta de rotina. Raioxizar o membro em questão e aguardar douta opinião da equipa de traumatologia-ortopedia. «Deite-se ali na marquesa» ordenou-me a auxiliar de enfermagem. É o melhor momento do dia, penso eu; o contacto físico com a "nobreza" sitiada entre quatro paredes hospitalares. «Como te sentes?» inquire o médico, num português que não engana a origem galega. E sem me deixar responder , observando o gesso da perna integralmente coberto por uma escrita a letra redonda e miúda, chama «Marisa! Tu que tens boa voz, lê-me o que está escrito "nesta perna"!».
E ela começou: "Detesto hospitais. Penso que ainda não o tinha referido aqui. Não porque tenha grandes problemas..."

Saturday, August 13, 2005

SÁBADO de MANHÃ

Dou folga ao meu corpo, passeando-o pela manhã clara, morna e calma, ao longo de um rio mil vezes cantado em verso e prosa, que adorna a cidade-a-que-já-chamaram-branca e que hoje nem por isso. Outros corpos, passam pelo meu em veículos de duas rodas, ora em ritmos pausados, ora em vigorosos sprints -porque a Volta dos profissionais está aí e o imaginário fabrica camisolas amarelas enquanto o diabo esfrega um olho, outros correm sem o apoio de qualquer outro meio de locomoção que não sejam as próprias pernas, deixando no ar odores acres de transpirações diversas e resfolgares assustadores como se o secumbir estivesse próximo e outros ainda, sentados em cadeiras quase-rentes-ao solo, esperam pacientemente que um peixe esfomeado abocanhe o isco traiçoeiro, para acabar sem honra nem glória no prato de um lisboeta, que estes vertebrados aquáticos, na praça, estão pela hora da morte.

Os olhos do meu corpo assinalam um facto insólito. Ao longo de uma hora de caminhar, não viram um único casal de apaixonados. Será que hoje a cidade não está para amar?!

Wednesday, August 10, 2005

MATINAL

Hoje acordei ao som da campainha da porta. Estremunhado, consegui com muita dificuldade situar os ponteiros do despertador; oito horas!! Por Minerva! Quem e a tão matinal e privada hora, teve o despudor de primir a tecla de acorde mais infernal?! Num momento, mil situações me passaram pela mente. Qual delas a mais dramática, que português que se preza imagina sempre o pior; um familiar hospitalizado, a mulher de um amigo a comunicar uma "triste notícia", a sogra a informar da necessidade de se mudar de armas e bagagens para o "nosso ninho" por via de uma reparação urgente da canalização, enfim , um cortejo interminavel de desgraças possíveis e previsíveis. Se por acaso, de um simples engano no andar pretendido, se tratar, já temos pretexto para convidar uns amigos mais íntimos para beber uns copos e celebrar o "que nada de grave nos aconteceu".

Enervado, abanei suavemente a minha-mais-que-tudo que dormia a sono solto e de olhos bem abertos que é uma coisa que me dana porque nunca sei quando dorme à séria ou me goza à valentona e num tom o menos alarmante possível lhe pedi «Querida: tocou a campainha. Não te importas de ir saber quem é, porque com a perna neste estado, vestir o roupão e procurar as canadianas, só chego à porta daqui a meia hora». Olhou para mim espantada e não se riu; sinal que estava mesmo a dormir. Levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. «Querida! Não estão a tocar à cozinha; estão a tocar à porta da rua!», preveni antes que se metesse na casa de banho e fosse tomar um duche.

Passados uns cinco minutos voltou ao quarto e anunciou satisfeita: «É o Gustavo, o filho da porteira que pede delicadamente, se não te importas que te faça o desenho de um dragão no gesso da tua perna, antes de ir para a praia. Garante que assina o nome dele logo a seguir à sigla FCP...».


Uma núvem muito cinzenta toldou-me a visão e por segundos não consegui atirar cá para fora o que me ia na alma. Foi a sorte do puto. E a minha, que mantenho impoluto do português mais vernáculo, este espaço de estórias da minha história.

Monday, August 08, 2005

LEGÍVEL

Eu sei que não nos conhecemos. Que ao leres as minhas palavras, elas te possam surpreender, porque a forma e o traço não te são familiares . É verdade que só aqui chegaste por puro desfastio, num fim de tarde quente-pegajosa, monocórdica de fogos, manchas de microalgas e férias, muitas férias, num rectângulo geográfico que não tem dinheiro para mandar cantar um cego, quanto mais para ócios daqueles com que sonhámos um dia vir a ter e repetir...sempre. Claro que nada se passa por puro acaso até mesmo no virtual; ou por isso mesmo. Visitavas um sítio conhecido quando na coluna dos links deparaste com o meu nick-name: "legível".

Porque te ensinaram que a "legibilidade de uma assinatura" pode ser a marca-de-água de um indivíduo, deduziste que (quem sabe?!), entrasses finalmente no universo de alguém que, independentemente do seu carácter ou modo de estar na vida, não representasse através da escrita, uma figura de retórica enquadrada no anonimato que este meio de comunicação possibilita, mas, pelo contrário, alguém a que só lhe faltasse a "carne e o osso", preenchido de muitas dúvidas, raras certezas, dramas e alegrias. Não resististe; fizeste um clique e...eis-te aqui. E leste:
"Eu sei que não nos conhecemos. Que ao leres as minhas palavras, elas te possam surpreender, porque a forma e o traço não te são familiares. É verdade que só aqui chegaste por puro desfastio, num fim de uma tarde quente-pegajosa, monocórdica de fogos..."
Tem um bom resto de domingo!
Legível

Friday, August 05, 2005

QUANTO MAIS QUENTE MELHOR

«Tu achas bem o que fizeram ao Manuel Alegre?» perguntou-me sem aviso prévio o Silvino e num tom de voz agastado e uns decibeis acima do seu registo habitual. Apanhado de surpresa (tinha havido um longo hiato na conversa avulsa e calma que mantínhamos na esplanada "salsas ondas" da praia de Carcavelos...), o bordo do copo da imperial que levava à boca, bateu-me num dente que só não se partiu por acaso, por via do movimento inopinado que a mão descreveu, comandada pela mente que na altura se encontrava ocupada com a pauta musical das ondas que lambiam a areia para logo a seguir partirem pelo mesmo caminho que tinham vindo. Quase ia jurar que até o caniche-branco-sujo que a volumosa matrona de fato de banho escarlate estreitava ao peito -e que ocupava a mesa ao lado da nossa, levantou a orelhas em sinal de protesto por lhe terem interrompido o sono. Na vetusta-senhora-dona-do-dito, não vislumbrei qualquer sinal de mau-estar, quiçá por ter interpretado que tal figura citada, bem podia ser colega de repartição do meu amigo Silvino...
«Sim, porque o homem não merecia aquilo; disponibilizou-se para a candidatura e depois apareceu-lhe o outro!», voltou à carga o meu interlocutor. As ondas continuavam a ir e vir em acordes sinfónicos só cortados pelos mergulhos dos banhistas encalorados e um sujeito vestido "à civil" de branco, surgiu numa ponta do areal junto à água a apregoar alto e bom som "Ólháááá língua da sograaaa!" . Um casal jovem, enrolava-se literalmente nas toalhas beijando-se deseperadamente enquanto dois nadadores salvadores observavam um grupo multicor de biquinis e o seu conteúdo, que teimava em tardar a entrada na água desafiadora.
«Este é bem o retrato da política que se faz nos dias de hoje! Se fosse a ele, candidatava-me na mesma, só para não me fazerem de parvo!, não achas?!» inquiriu-me uma vez mais, face ao meu silêncio. «Talvez tenhas razão Silvino; mas tu já reparaste bem para este magnífico dia de verão em que estamos envolvidos? E a cor da água; azul-sem-fim, ahn?! E as pessoas bonitas que por aqui se passeiam? E a cerveja generosa e gelada que bebemos?. Mas tu estás a falar de Portugal ou de Carcavelos?!»

Tuesday, August 02, 2005

O PROCESSO

Foi naquele café-pastelaria de esquina do Largo do Camões com a Rua do Alecrim, que te encontrei. Tinha acabado de entrar e pedido ao balcão um marlboro-que-mata-que-se-farta e deitado um olhar ocasional em volta, quando te vi. Eras o único ocupante de uma das poucas mesas do espaço acanhado, antigo e a pedir uma limpeza geral ou a mudar de ramo de actividade. Aparentemente, dir-se-ia que lias um livro que seguravas com uma das mãos, enquanto a outra mantinha no ar à altura da boca, uma chávena de café. No entanto, num olhar mais atento, reconheci-te os olhos parados em direcção ao chão e talvez por isso mesmo , sem horizontes concretos.
Deixei o gajo do balcão, com cara de fuinha, de maço de tabaco na mão a falar sózinho e perguntei-te se me podia sentar. Passados alguns segundos (e não foram poucos) levantaste a cabeça, olhaste-me sem me ver, pousaste a chávena na mesa e fizeste um gesto largo com a mão como quem diz: "estás à espera de quê?!". O cara de fuinha perseguiu-me com o maço de tabaco e, com maus modos, inquiriu se eu "ia querer mais alguma coisa?"; devo ter conseguido fazer o meu pior semblante e retorquido com um "quando e se quiser, peço!" que o tipo rodou os calcanhares e bateu em retirada.
Enquanto isso, mantiveste-te aparentemente sereno, sem um gesto que fosse e os olhos fixos num ponto que de certo me ultrapassava. Disse-te que já era tarde, muito tarde mesmo e que se quisesses fazia-te companhia até casa, onde, quem sabe, os teus já estariam em cuidados com a tua demorada ausência. Um meio-sorriso irónico e indiferente foi a tua resposta. Fechaste o livro (só tive tempo de ver o autor: Kafka) e levantaste-te. Segui-te em direcção à porta mas ainda consegui ouvir um fulano que estava numa mesa próxima, dizer para outro: «Aquele tipo, o mais novo, bom aspecto, passou aqui o tempo todo a falar com ele próprio; estes tempos que correm, fazem mesmo virar a cabeça ao pessoal...».