Friday, August 27, 2010

O HOMEM ARRANHA

Foi uma manhã para esquecer. No momento em que ia abrir a porta para sair, passou-lhe o filme todo pelos olhos. Na noite do dia anterior ao regressar do emprego, apenas tinha conseguido parquear o carro a cerca de trezentos metros de casa. Quando chegou ao prédio onde morava lembrou-se que tinha deixado as chaves no porta-luvas da viatura. Cansado, não quis voltar atrás e tocou para Catalina lhe abrir a porta. Dessa vez, ela não lhe perguntou com o azedume do costume se ele tinha engolido as chaves ou se as tinha deixado esquecidas no quarto da amante. Elias sabia que tudo o que fizesse (e o que não fosse capaz de fazer) servia de argumento a Catalina para lhe atirar à cara o sonho irrealizável de pretender ser um mágico consagrado e exibir a sua arte nos grandes palcos internacionais ou de lhe arranjar mulheres onde ele nunca supôs que elas existissem. Fosse pelo que fosse, a sua incontornável companheira ao não estar para aí virada (para a simpática e acolhedora conversa rotineira de boas vindas) deu azo a que ele nunca mais se lembrasse do assunto. Catalina já estaria no hospital às voltas com uma cesariana de urgência ou de uma grávida mais destrambelhada quando Elias percebeu que estava fechado... por fora, hábito que a sua mulherzinha sempre tivera por questões de reforçada segurança caseira estivesse ele, ou não, em casa. Não sendo homem para se atrapalhar com questões de lana caprina, leu em diagonal três ou quatro revistas de banda desenhada ficando ao corrente das técnicas do seu herói Peter Parker, não ficou ponta de linha nos novelos Âncora subtraidos à caixa da costura e ei-lo a encetar a descida do décimo-quinto andar para a rua. Encostado o mais possível às paredes para não causar frisson a quem na rua passava, arranhou-se todo, como era de calcular. Mas chegou ao chão, são e salvo. Sem as chaves do carro, que se esquecera delas na cozinha,entretido a saborear um pão de leite barrado com açúcar e uma caneca de café com três colheres de manteiga.
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Neste texto existe uma contradição factual. Quem a reconhecer no espaço de trinta (30) dias, habilita-se ao sorteio de um daqueles cavalos que fazem sombra ao mar, com arreios incluidos e as quatro patas em bom estado.
2010. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Sunday, August 15, 2010

A SERPENTE (A) LADINA
















Este ano tirei-me dos meus cuidados e decidi dividir o período de férias entre Láfora (cosmopolita cidade de veraneio situada entre Ne Nhures e Al Gures) e Cádentro. Da primeira escolha limito-me à referência uma vez que vos sei viajantes de largo currículo externo e mal andaria eu em pretender ensinar a missa ao sacristão... Em abono da verdade, devo confessar que a selecção do segundo local nasceu de um acaso fortuito. Andava eu a vasculhar algumas prateleiras de uma livraria em Lisboa, na procura de um opúsculo sobre a vida social do lamantim, quando dou de caras com um sujeito de uma agência de viagens que em certa ocasião me vendeu umas férias nas Ilhas Pan D´Orcas. Conversa puxa conversa e eis que ele me me diz «você tem de ir a Vilamaninhos!» Pelo nome, imaginei uma coisa mais ou menos sul-americana. Mas ele tirou-me daí o sentido. «Vilamaninhos é uma aldeia na periferia de Cádentro.» Pensei que me estivesse a gozar. «Cá dentro? da livraria?!» Antes que se instalasse a confusão total, pedi um mapa e um café a uma empregada que de tão solícita me trouxe também meia-dose de frango de fricassé «é para entreter o palato durante a viagem.» esclareceu. Apontada a aldeia a dedo, anuí. Cheguei noite escura mas não passei despercebido. A aldeia esperava-me em peso e a pergunta de Manuel Gertrudes não tardou «viu a serpente voadora?». Sosseguei-o «Ontem, contra a Académica, nem a águia Vitória se viu no ar, no momento do costume... ». Uma moça desempoeirada que vim a saber depois chamar-se Carminha Rosa, arrimou-se-me «Esperava-te fardado, mas assim como assim, daqui a pedaço tiras a roupa... » . Avançou logo de seguida Jesuina Palha «É verdade que da próxima vez os militares chegam aqui de submarino?» E foi assim pela noite adentro. E por outras noites afora. Até sair das páginas do livro e regressar ao resto das minhas férias.
2010. Texto, desenho e foto de Alberto Oliveira.