Saturday, March 27, 2010

UM HOMEM DIFERENTE












João Marreiros percorria a custo a zona ribeirinha da cidade, procurando confundir-se com as paredes decrépitas e grafitadas de velhos armazéns ao abandono que não abonavam a favor da paisagem prometida pelos folhetos das agências turísticas. Protegia-se assim de alguns empresários circenses sem escrúpulos, sempre em ânsias de descobrir o insólito, a deformidade, enfim, tudo o que pudesse ser alvo dum público àvido de emoções fortes à conta da desgraça alheia. Foi numa manhã igual a esta, que Frederico - descobridor de gente incomum do submundo, se cruzou com ele. Prometeu-lhe uma reforma radical na sua vida: fama e proveito estavam logo ali ao virar da esquina e, com um pouco de sorte, quem sabe? até o amor podia acontecer. João, seria uma aberração da natureza (um erro de deus, como costumava afirmar em pranto sua mãe) mas não precisava de espelho para se rever nem de David Lynch para se martirizar ainda mais. Em curto espaço de tempo, as promessas passaram à dura realidade dos circos ambulantes e palcos de duvidosa qualidade, reclamados por um cartaz explícito: "João Holmes de Portugal. Espectáculo para adultos" que era por lei obrigatório e concorria para os êxitos de bilheteira de tão degradantes eventos. Farto de ser usado, assim que a oportunidade surgiu, fugiu para o anonimato, sem pôr a vista em cima de dinheiro que se visse nem de amor que chegasse. «Óh amigo!» ouviu uma voz nas suas costas «Você arrasta-se tão penosamente que impressiona. Não se ofenda, mas tenho em minha casa (era do meu pai, coitado... ) uma bengala que lhe pode dar jeito para se amparar... ». João sorriu pela primeira vez em muitos anos «E acha que eu preciso?!»
2010. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Saturday, March 20, 2010

PAUSA PARA EXPLODIR DE ALEGRIA (11)









É notória a boa disposição que reina entre os portugueses. Os sorrisos de orelha a orelha, semelhantes àqueles que transparecem nos rostos dos três cidadãos - que a imagem documenta - enquanto aguardavam pela passagem do tempo sem a pressão quotidiana de consultar as horas, utilizando o banco corrido da paragem do transporte colectivo, são uma constante. Devo referir que, no momento em que lhes pedi autorização para os fotografar, as gargalhadas entre eles eram tão sonoras que me surpreendi deveras, de euforia tão inusitada. Até o meu meio-sorriso, que afivelo permanentemente para não destoar dos meus patrícios, se deixou contagiar pelo clima de alegria intensa e ri com gosto. Não me perguntem de quê, que por essa altura ainda não sabia. Deu-me para ali e chega, pois aprendi, nos tempos em que soletrava as primeiras letras, que um português para rir a bandeiras despregadas não precisa de ter motivo; basta ter vontade de fazer coro com os outros. É conhecida a lapidar frase "onde ri um português, riem dois ou três". Depois, se a curiosidade fôr muita (e de ensaiar muitos vocarizos) é que pergunta do que se estavam a rir os outros. E se por ventura, a coisa não tiver piada nenhuma, não deve desatar a lamentar-se. O pior que pode acontecer a um alegre militante é soltar o primeiro lamento. Neste país, recordo. A partir daí, nunca mais ninguém lhe consegue ver os dentes e os reparos, as queixas, as críticas, e a contestação, são o pão dele de cada dia. E se não houver coro, há que tomar a iniciativa, embora saibamos que os desmancha-prazeres das frases feitas pelam-se por encontrar um alegre militante a rir isolado e, aparentemente, a despropósito. "Muito riso pouco siso" é a palavra de ordem mais utilizada por um grupelho (nem sequer têm representação parlamentar... ) de portugueses descontentes com a vida e sempre prontos a um comovente choro convulso, um corajoso arrancar de cabelos ou pôr um fim (épico) à existência, numa linha de combóios desactivada. Estes três alegres cidadãos da fotografia - vim depois a saber - até tinham razões de sobra para rirem até às lágrimas. Tinham acabado de consultar num jornal diário a nova tabela de retenção na fonte do IRS.

Saturday, March 13, 2010

UMA DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ












Não queria acreditar no que os seus olhos viam na primeira página daquele jornal diário. Sendo certo que as outras primeiras páginas de outros jornais diários que acompanhavam solidárias aquele que lhe chamava a atenção pela manchete extraordinária, presos por molas de roupa no escaparate-estendal da tabacaria, não se ficavam atrás nas chamadas de atenção em letras gordas para tudo o que era passível de fazer estremecer de horror e repúdio o coração e miolos do mais pacato cidadão, carente de notícias onde pontificasse a paz e a alegria de viver e, quem sabe, de quem das desgraças alheias procura o entretenimento possível. Reconhecendo que nunca se perdera nos meandros labirínticos da numismática (a única vez - em criança - que conseguiu juntar meia-dúzia de moedas no interior de um porquinho de louça, não descansou enquanto não estilhaçou o bácoro, correndo célere para a pastelaria mais próxima, onde converteu os parcos valores em dois pastéis de nata) naquilo que se referia ao glorioso, as coisas fiavam mais fino. Se lhe perguntassem de surpresa, que evento - quando ainda mal tinha aberto os olhos para o mundo e decidiam por ele - ocorreu em primeiro lugar, se o seu baptizado ou a presença da foto da sua cara rosada e de chucha na boca, no cartão de associado das águias, teria dificuldade em responder de fonte segura. Sabia isso sim, que se tinha mantido fiel (apesar de alguns desgostos de percurso) ao emblema que lhe tinha calhado em sorte (era um espectáculo ouvi-lo cantar de trás para a frente e da frente para trás os versos das papoilas saltitantes) o mesmo não se passando no relacionamento com a mãe dos seus filhos, que se ia finando de desgosto quando um belo domingo testemunhou por puro acaso (enquanto entediada fazia zepping) uma câmera de televisão apanhar um grande plano do marido, beijando na boca uma colega do banco e visita de casa) festejando na Luz um golo do slb. Ele sabia que esta época, o clube do seu coração vinha sendo vilipendiado por tudo quanto era adversário, chegando ao ponto de se afirmar que "estava a ser levado ao colo para o título de campeão, pela comunicação social." Ora aí estava a evidência - de sinal contrário, na primeira página deste jornal, quem sabe dirigido por algum dragão ou lagarto de mau perder ou de estribeiras perdidas. Encheu-se de coragem. Por uma vez, iria gastar dinheiro num jornal não desportivo. "Está ver onde isto chegou, senhor Carlos? A fazer conotações deste ordem... ". O senhor Carlos, dono da tabacaria, adepto confesso do futebol inglês em geral, do Manchester United em particular, e que não entregava os seus créditos em mãos alheias, interrompeu-o "Ó homem! você ferve em pouca água. Já pensou se isso não se deve a um lapso da redacção? que a ideia era escrever que o homem violava em Telheiras mas é de Benfica? ".
2010. Texto de Alberto Oliveira, foto respigada do diário "i".

Saturday, March 06, 2010

PAUSA EM MOVIMENTO DUAL (10)












«Nada me move contra a pesca dita desportiva, de lazer ou, acrescentaria, a de tentar fintar a carestia de vida arredando a barriga e a bolsa do balcão da peixaria. Não dominando a arte da dita actividade, atrevo-me no entanto a imaginar que ela não carece de grandes conhecimentos técnicos-tácticos e que a maior virtude de quem a pratica, reside numa enorme dose de paciência. Pois é aqui que bate o ponto: nela, dificilmente me revejo, aguardando paulatinamente que um besugo ou um sardo - traiçoeiramente engodados por minhocas-mártires de uma guerra que não pediram - abocanhem os anzóis até serem içados para um meio-ambiente adverso do seu. A minha maneira de ser e de estar, colide frontalmente com a passividade física do pescador enquanto segura o zingarelho piscatório, tendo na sua frente uma imensa massa de água, cuja monotonia apenas é quebrada ocasionalmente pela passagem ao largo, da silhueta de um petroleiro ou de um navio de cruzeiro. Defendem alguns, que para reflectir nas coisas da vida não há melhor que a pesca. Podem ter imensa razão. Mas fico na minha: para meditar, prefiro uma corridinha urbana de dez mil metros pela manhã .» concluiu Euclides convicto e quase sem fôlego, pois nem um parágrafo sequer tinha entremeado no seu longo discurso. Demétrio, fazendo jus à fama de bom ouvinte, permitiu que o amigo regressasse à respiração normal e inquiriu candidamente «Corres em linha recta e pausas nas curvas?»

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.