Thursday, May 28, 2009

A ESTAÇÃO MAIS QUENTE

Nada fácil chegar à fala com este Legível, disse para com os seus botões Macário B. após a septuagésima tentativa de ligação ao número que constava no cartão de visita que o seu amigo de longa data lhe tinha dado, depois de uma curta e apressada troca de palavras de circunstância, à porta de um dos ministérios no Terreiro do Paço e passados cerca de vinte anos sem terem notícias um do outro. O pequeno rectângulo de cartolina branca que voltou entre os dedos apenas lhe revelava o nome que reconhecia desde os primeiros tempos de escola (o outro era o "Banqueiro", porque o amigo desde cedo afirmava que quando fosse grande havia de ser rico) e logo abaixo, em Verdana e a negrito sub-secretário do estado. Macário B., pouco dado às coisas da política nunca lhe tinha passado pela cabeça que Legível tinha atingido tal patamar nos destinos da nação e surpreendendo-se uma vez mais com os insondáveis mistérios do destino interrogou-se: o amigo teria posto de lado o objectivo de ser rico e "apenas" pretenderia chegar a conselheiro do estado ou ambas as metas estariam agora nos seus próximos horizontes? De elucubração em elucubração, veio-lhe à memória que, na confusão da despedida rápida, Legível prevenindo-o dos seus muitos afazeres, foi avisando que se quisesse telefonar, o mais certo era ouvir a voz do seu empregado italiano. Bivalve, se a memória não o atraiçoava... E mais: que dali a poucos dias partia em viagem ministerial para a Capadócia.

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Se Legível pode ir para a Capadócia, que impedimento pode haver para que Alberto Oliveira não possa ir para um destino de férias tão bom ou melhor ainda? ou nem pouco mais ou menos? ou assim-assim? São coisas que nem se perguntam. Valem pela certeza que este espaço está encerrado durante uns tempos e nem vale a pena Macário B. insistir...

2009. Texto e vídeo de Alberto Oliveira.

Friday, May 22, 2009

SAIR DOS EIXOS















Após um salto no ar, dois piões e um forte cheiro a borracha queimada, o carro imobilizou-se finalmente no triângulo amarelo ao centro da imagem. Ficou imóvel no interior da viatura sem conseguir perceber a razão para aquele estranho despiste. Justamente com ele, que se considerava um condutor defensivo, como fazia questão em esclarecer a quem o quisesse ouvir e, logo naquele dia e àquela hora que ele procurara resguardar de olhos indiscretos. Para a curta viagem de regresso optara por uma estrada que sabia com escasso movimento e aprazível aos sentidos: de um lado a serra de cor ocre e imponente, e do outro, arvoredo a perder de vista. De facto, até àquele momento, o percurso tinha sido agradável e nem se havia cruzado com nenhum outro veículo. Não encontrando explicação para o sucedido e apercebendo-se que não controlava a situação, voltou-se para a mulher sentada ao seu lado «Estava a ser um dia demasiado perfeito, não achas? E que desculpa esfarrapada vou ter de arranjar quando chegar a casa para explicar que o carro pifou num sítio que nada tem a ver com os meus hábitos diár... » Com um olhar depreciativo ela interrompeu-o «Telefona para o autor deste relato. Quem sabe se não te arranja uma justificação consistente... » Depois saiu do carro, do texto e da imagem.

2009. Texto, fotografia e tela de Alberto Oliveira.

Friday, May 15, 2009

PRENUNCIAR O FIM










É mais fácil descobrir uma agulha num palheiro que anunciar com exactidão o fim de qualquer coisa. Por exemplo, o último acordo ortográfico luso-brasileiro decretou que a palavra exactidão se passe a escrever exatidão . Mas quanto tempo decorrerá exactamente até que o último defensor de uma grafia que aprendeu a amar desde tenra idade, se fine? E o Mundo (assim era designado o planeta Terra pelos menos letrados na altura em que abri os olhos para esse mesmo Mundo) quando acaba? O "Mundo" tem sobrevivido àqueles que ao longo dos tempos foram anunciando o seu fim, chegando ao cúmulo de vaticinar o dia certo... Quem pode afirmar com convicção que o Futebol Clube do Porto será enfim vice-campeão da Liga na próxima época ou que Cordélia e Afrânio, meus vizinhos do sexto andar, ponham um ponto final na sua infernal relação que se arrasta há quarenta penosos anos, no dia tantos do mês tal? "E a crise? o seu fim tem data marcada?" perguntarão vocês, estimados leitores das minhas humildes letras, tentando simpaticamente descortinar "... quando é que, finalmente, editas um texto-do-teu-sentir em vez de mandares recados pelas tuas personagens?" Quem se atreve a prever o fim de uma crise que nem sequer afectou alguns e sempre tem vivido paredes meias com muitos? ou que, a fantasia pode ter limites e o fim de qualquer coisa pode muito bem ser o início de outra, não é verdade? respondo eu com outras tantas questões que não esclarecem coisíssima nenhuma e tendo sempre presente que o fim pode chegar em qualquer momento quando, por princípio, menos se espera por ele.
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Legível leu e releu o texto, nem sequer se preocupou com a ortografia e disse para com ele "Com isto acaba-se de uma vez por todas com dúvidas e especulações e já posso dormir descansado. Quer dizer, quando fôr horas disso... "
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... e para ter outros fins em vista sugere-se a visita a http://www.minguante.com/?pag=entrada. A entrada é grátis todos os dias da semana: úteis e inúteis.

2009. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Tuesday, May 05, 2009

O CÍRCULO DE GIZ DO GATO INSANO







Tinha sido com alguma dificuldade que marcara território. Que não se pode pedir a um gato, conhecimentos geométricos por mais rudimentares que sejam, e pegar num pau de giz com a igual destreza dum humano. Era um sítio calmo e de temperatura agradável, com milhares de livros em caixas e prateleiras. Só muito raramente - sinais da crise, um jovem subia a escada em caracol e recolhia um livro para repôr no lugar de outro de igual título, que acabara de ser vendido na loja rente à rua. A meio de uma temporada, na qual o mês de Janeiro foi a excepção, a monotonia começou a fazer-se sentir e a minar-lhe o pêlo . Ainda se soubesse ler... Foi no decurso desta inquietação, perceptível pelos movimentos nervosos da cauda, que atentou no homem do rés-do-chão do prédio ao lado. Queimava os dias de phones nos ouvidos, e aparentemente, passava na perfeição por um daqueles melómanos em que tudo na vida está bem, desde que a música não entre em ruptura de stocks. Mas o nosso felídeo, experiente de sete vidas, que não confundia gato por lebre, quando se apercebeu que o amante da arte dos sons, subia repetidamente o olhar guloso para o seu sítio, entendeu tudo: o homem preparava-se para lhe usurpar o território. Tão desesperado ficou por, num ápice, passar do estado de agitação ao de candidato a sem-abrigo - não sendo este último estado de sua iniciativa, que nem deu conta que num expositor, a imagem de Bertolt Brecht na capa de um livro, lhe piscava um olho e se propunha mediar o conflito próximo. Saltou, vigilante, para uma caixa de cartão e aguardou em ânsias, que um autor saísse das linhas de um poema e lhe desse indicações precisas que o resto viria por acréscimo.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.