Friday, June 30, 2006

UM TIGRE de PAPEL



















O Nuno é meu amigo dos tempos das primeiras letras. É uma amizade sólida, fundada em diversos pontos comuns e outros nem por isso; que as amizades também assim se alicerçam. Um desses nem por isso é que eu gosto de animais no seu habitat; ele, se pudesse, levava para casa tudo o que fosse bicho. E não pode, pelo simples facto do espaço que habita, estar superlotado... por esses mesmos bichos. Uma refeição em casa do Nuno é uma autêntica aventura na selva; tão depressa temos uma piton enrolada ao nosso pescoço para logo a seguir observarmos a queda duma tarântula no cesto do pão. Farto dos problemas com a antiga vizinhança (um burro chegou a transpor a entrada da casa do Guimarães do oitavo esquerdo e sabia que lhe ratavam nas costas por à noite passear um casal de veados... ) comprou uma vivenda o mais afastada possível da confusão urbana. Uma das noites que lá passei, por via de um temporal desfeito, fui acordado por uma hiena, que, aos pés da cama, ria alarvemente de uma piada de gosto duvidoso, contada por um gorila vestido com um pijama verde-alface.
Tive de lá voltar ontem -por motivos que para aqui não são chamados, e, no lugar onde habitualmente estava um rafeiro, encontrava-se agora um tigre enorme às voltas com um recipiente cheio de leite. Já nada me espanta em relação a este meu amigo e ao seu amor pelos animais. Passei próximo do predador e não demonstrando qualquer receio atirei-lhe umas cordiais "Boas tardes!". Rodando a enorme e assustadora cabeçorra, presenteou-me com um olhar doce e um lânguido miado...
Almada, 2006. Texto e foto de : Alberto Oliveira.

Tuesday, June 27, 2006

VOCÊ GOSTA de BRAHMS ?



















Foi notória a máscara de espanto no rosto do meu interlocutor quando inopinadamente assim o questionei. «Que o nome não lhe era de todo estranho; mas, assim de repente, só podia associar -pela semelhança?!, o de Banks, goalkeeper da selecção inglesa nos anos setenta.» Repliquei que «... este Brahms (e não Banks), nascera em Hamburgo e aos vinte anos já era dono de uma intuição notável para a... » Iluminou-se a face do meu dialogante num amplo sorriso de conhecedor e não me permitiu acabar a frase « Ora, não me diga mais! Alemão e ponta de lança! quase que apostava... Como é que não me lembro dele é que me surpreende!»
Despedi-me e desci a Liberdade até aos Restauradores. A meio, sentei-me num dos bancos da avenida; as chuteiras apertavam-me os pés e aquela entrada violenta do holandês arrumou-me para o resto da semana. Só não chorei por vergonha.
Almada, 2006. Foto-montagem e texto de: Alberto Oliveira.

Saturday, June 24, 2006

FÁBULA GRASNANTE COM BOLA DENTRO




















Foi no Chiado. À tardinha -como convém a qualquer fábula que se preze, desenrolada em espaço lisboeta. Era impossível não ouvir (tão elevados eram os decibéis), o diálogo travado entre um jovem casal de gansos que se fazia acompanhar da respectiva prole. Ela admoestava-o irritada num grasnar caudaloso «... parece impossível faltares ao jantar de aniversário da minha mãe por causa de um insignificante jogo de futebol; nem parece teu! Se fosses dirigente desportivo ou se tivesses interesses nessa área, ainda perceberia; mas um sujeito como tu, com formação académica, ligado às artes e reconhecendo que estes espectáculos servem às mil maravilhas para a manipulação de massas, concorrendo para que se esqueçam dos reais problemas que o país atravessa... isso é que não posso levar à paciência! » e o seu pescoço dançava de um lado para o outro nervosíssimo. Ele, aparentemente mais contido e deitando um olho às crias entretidas a perseguir os pombos, ripostava « Minha querida; a tua mãe no próximo ano também aniversaria. Aí, estarei presente, prometo. Este não, que o mundial de futebol só se realiza de quatro em quatro anos e Portugal se vencer a Holanda, está na senda de uma prestação brilhante a todos os títulos. Não vou perder o jogo porque gosto do espectáculo e se os actores principais forem portugueses, melhor ainda. Sei da manipulação, claro. Só finjo não perceber que ela só ocorra agora e aqui... o que é rematada idiotice, porque o desporto (futebol incluido), sempre serviu os interesses de todos os paises e de todos os regimes políticos. Agora toma conta dos putos que vou fazer uma coisa que já devia ter feito há muito; vou comprar uma bandeira.»
Esopo e La Fontaine, sentados na esplanada de "A Brasileira", ouviram tal como eu, a conversa e no fim, exclamaram em uníssono « Os gansos portugueses estão cada vez mais divididos!»
Lisboa, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Wednesday, June 21, 2006

O INTERIOR do POEMA



















Existem variados géneros de poesia menor; aquela cujo interior está vazio de coisa alguma, a que do seu âmago transbordam gritos de socorro onde não existe naufrágio, a que não admite que das suas entranhas apenas brotam palavras azedas de pescada mal digerida e... tantos outros (sofríveis) exemplos de como a poesia não deve estar recheada. Quem me conhece, sabe que sou de gostos requintados; que não confundo petinga com salmão, nem chamo ao gato, lebre.
Admiro os poemas que tragam dentro de si palavras novas; que possam fazer-me crer que, uma ave desenhada numa parede, consiga voar para horizontes futuros menos cinzentos, que estes que hoje contemplo. Uma ave desenhada numa parede, pode voar; assim lhe dêem asas no interior de um poema.
Almada, 2006. Texto e foto de : Alberto Oliveira.

Sunday, June 18, 2006

A MENINA e os MORANGOS



















Era uma vez uma menina. Se é assim que começam as estórias para os mais pequenos, porque motivo não hão-de também iniciar-se deste modo para o pessoal adulto? É uma interrogação que me costuma assaltar o intelecto com regular frequência. Sim; que o meu intelecto exercita-se com fananços à mão armada perpretados por interrogações normalmente disfarçadas de afirmações. Parece complicado mas é das coisas mais fáceis de empinar e de resultados quase imediatos, uma vez que conseguimos -ao fim de duas semanas deste salutar exercício, distinguir um coice de uma mula velha, de um beijo dado (e retribuido!) aplicada e apaixonadamente à mulher dos nossos sonhos e incertezas. Ou a diferença entre uma nota de dez euros e uma de cem. Ou ainda, para os mais conservadores, notar que não há comparação possível entre uma jovem virgem e a Virgínia Salema, minha colega de mestrado, magnífica fêmea, permanentemente em cio e destabilizadora de centenas de matrimónios.
Era uma vez uma menina. Que estava na montra de uma loja de artigos diversos, daqueles que se oferecem a alguém de quem não gostamos. pelo aniversário ou pelo Natal. Com uma carinha de parva (benza-a Deus ou o artista que a criou), que não era brincadeira. Isso, foi a caminho do almoço. Para a sobremesa, pedi morangos com chantilly.
Almada, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, June 15, 2006

O AVIÃO



















Sei que era o seu sonho não porque mo tivesse confidenciado, mas o meu sexto sentido percebeu-o; aliás, não era homem de muita conversa. Provavelmente aquele foi o dia da excepção à regra porque para lá do formal e recíproco bom-dia quando descemos no elevador, já na rua, elevou os olhos para o céu, tornou a baixá-los e olhando-me sem me ver, disse simplesmente «Hoje está um belo dia para voar»
Ao fim do dia quando regressei a casa, o vizinho do terceiro que entrava também depois de ter passeado o cão, deu-me a notícia. Cerca das três da tarde o Eduardo Lima, bancário reformado extemporâneamente, tinha-se atirado do décimo segundo-andar à rua. Consta, segundo uma testemunha ocular, com um dos reactores em chamas.
Almada, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, June 12, 2006

HISTÓRIA de ARREPIAR em TEMPO de CALOR



















Passeava tranquilamente no fim de tarde estival, pelo lado de dentro do passeio acanhado -que os passeios portugueses que se prezam, são por norma acanhados e onde mal cabem um transeunte em andamento e um veículo estacionado. Estava feliz porque não era exigente e lhe bastava aquela simples aragem que se fazia sentir, depois de um dia de calor tórrido e caminhar sem destino pelas ruas que conhecia de olhos fechados. Nem reparava nos sacos de lixo que se amontoavam fora dos contentores cheios e colocados em sítios menos próprios e fazia o possível por conter a respiração para não inalar o cheiro nauseabundo e o pó que andava pelos ares, por via da ligeira brisa quente que se levantara. Nem a falta de arvoredo protector para uma caminhada higiénica lhe tirou o sorriso, quando entrou na rua mais concorrida. A sua lógica simplória, dizia-lhe que para existirem lugares mais amplos, arejados e verdejantes, outros teriam forçosamente de ser o contrário desses. Não caminhou por muito mais tempo. Subindo o passeio, um carro apanhou-a pelas costas, matando-a. Aquela formiga tinha os dias contados; nas janelas, imensas bandeiras verdes e vermelhas adejavam, preludiando alegrias efémeras.
Almada, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.
Interrompi momentaneamente o tempo de lazer para escrever este texto, porque a formiga me pediu para o fazer, caso morresse de morte-macaca. Atendi-lhe a solicitação uma vez que uma formiga morre de "morte-formiga"; não de "morte-macaca". O que é estranho e carece de investigação. O lazer continua.

Sunday, June 04, 2006

EM DEMANDA da MÚSICA



















Qual Excalibur cravada na pedra do tempo coberta de esperançoso verde, a guitarra eléctrica simboliza também (porque não?!) o Graal dos tempos correntes; em sua demanda, milhares e milhares de peregrinos vão ouvir os sons que dela transpiram e de outros instrumentos seus irmãos na música que se quer em concordância. A voz, assume-se como o instrumento catalizador dos ouvidos mais duros à mensagem acórdica e as multidões acreditam que podem esperar por amanhãs menos cinzentos que aqueles que se vivem na actualidade.
Na rotunda da Praça de Espanha em Lisboa, uma figura de vestes antiquíssimas e encapuzada, ri desmesuradamente dos resultados da poção mágica . Chama-se Merlin e veio em obediência ao pedido do seu pai, Robert de Boron.
Lisboa, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.
O tempo quente chama-me para outras paragens. Mais frescas de temperatura e onde possa pôr em dia outros contos, outras estórias e acima de tudo as conversas com amigos e conhecidos; em resumo, descansar a vista e dar corda à língua. Voltarei legível e sorridente.

Thursday, June 01, 2006

LISBOA e as VACAS



A cidade de Lisboa está repleta de vacas, constatei um destes dias, quando me desloquei à capital e quase chocava a cada passo com estas simpáticas e leitosas criatura. Tenho por hábito, não demonstrar estranheza ou espanto quando o quotidiano me oferece de surpresa, situações pouco comuns ou até mesmo aberrantes; se há coisa de que não goste é a de passar por cidadão não esclarecido mesmo quando a informação não me chegue atempadamente . No caso das vacas, ouvi uns zun-zuns mas pensei tratar-se do problema das quotas do leite e não liguei mais ao assunto. Assim, quando nos Restauradores uma vaca preta me interpelou, questionando-me do meu apreço (ou não) por Wassily Kandinsky fiquei logo de sobreaviso. A cultura -em formato ruminante, tinha uma vez mais descido à rua, misturando-se com o povo e fazendo-lhe perguntas difíceis.
Na Feira do Livro, o mesmo cenário; uma manada de vacas pastava ordeiramente, deitando de quando em vez o rabo do olho para os títulos dos livros "do dia". Foi por essa altura, quando numa esplanada? improvisada da Feira degustava um café e folheava despreocupado alguma poesia do António Maria Lisboa que a vaca colorida -que podem observar na imagem, me abordou «Pelo que me é dado ver, você (e ao pronunciar "você", os olhos da vaca amendoaram-se, juro!), deve ter uma cumplicidade muito próxima com as coisas da arte. Aposto que adora Marcel Duchamp. Acertei?!». Não resisti mais. Desci à zona ribeirinha e na Portugália encomendei um bife... de porco.
Lisboa, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.