Thursday, January 31, 2008

E DON JOSÉ NÃO SE CANSA DE CAVALGAR?
















"Não te importas de te chegar um pouco mais para lá? Quem nos vir assim tão próximos até julga que temos um caso" falou azedo, mas mantendo a compostura, o marco do correio azul para o marco do correio encarnado. Este, vermelho de indignação, ripostou em tal registo de voz que se podia ouvir no Rossio "Se te imaginas superior a mim só porque a correspondência que te entregam chega ao destino mais depressa que a minha, tira o cavalinho da chuva. Olha que ainda ontem -devias estar a dormir pois não deste pela conversa, o senhor Amaro que fez serviço ali na esquadra ao lado, contou-me que uma vez meteu uma carta no teu interior a pedir umas massas ao pai para comprar uma arma (a que lhe tinham distribuido não tinha gatilho) e quando recebeu a resposta já estava reformado... " O marco de correio azul empalideceu ligeiramente mas não desarmou "Ora, ora. O mais certo foi o Amaro -que chegou a ganhar um campeonato regional de distração, ter enviado a carta para o avô que já tinha falecido há uns bons trinta anos... Mas reparaste no sujeito corporalmente indescritível e tecnicamente perfeito que me deixou aqui uma cartinha? que nem se dignou olhar para ti? Queres saber quem era, queres?" O marco do correio encarnado acusou o toque mas a curiosidade falou mais alto e aceitou o desafio num simples aceno de cabeça. Triunfante, o marco do correio azul, olhou disfarçadamente em redor e sussurrou " Foi o Legível, aquele tipo dos blogs. E até me confidenciou o teor da missiva que ia enviar aos seus leitores: depois de ter sido vista na Polinésia, a polícia inglesa estava na pista da cadeira eléctrica com rodas... "
Lisboa, 2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, January 26, 2008

EQUILÍBRIO ESTÁVEL
















Era uma mulher com sofreguidão de conhecimento. Os factos mais inconcebíveis não a perturbavam: antes, não descansava enquanto não lhes conhecia as causas e efeitos. O cidadão que caminhava à sua frente, possuia apenas uma perna, não se apoiava sequer a uma bengala e -estranhamente, não saltitava. Não tardou muito que Adozinda Maria estugasse o passo e, lado-a-lado com o perneta, lhe inquirisse com o ar mais natural deste mundo "O senhor vai-me desculpar, mas faz-me uma imensa impressão vê-lo andar sem outro auxílio que não seja apenas o do seu próprio corpo. Já pensou em amparar-se a duas canadianas?" Ele parou, olhou-a com um sorriso desalentado e respondeu "Pensar não pensei, mas que havia de ser bom, disso não tenho dúvidas. Mas... já me chega a portuguesa que tenho lá em casa, que não é nada dada a dividir amparos.

Lisboa, 2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.

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Como os leitores já repararam (sobretudo aqueles que conseguem ler a "letra minúscula" da publicidade que não se pretende lida) ainda não foi hoje que o prometido texto sobre a "cadeira eléctrica" foi editado. Desta feita, e porque ao terrífico zingarelho executor de corpos e almas (e depois de reparada a avaria) lhe foi adicionado um rodado -para mais facilmente se deslocar de execução em execução, ao sair da oficina (sita ao cimo da Calçada da Ajuda), o técnico seu reponsável, num momento de distração, permitiu que a cadeira descesse, desgovernada e em alta velocidade, em direção ao rio, perdendo-a de vista. A PJ tomou conta da ocorrência e o autor pode dormir descansado.

Monday, January 21, 2008

PEQUENO-ALMOÇO COM MÚSICA

















"Ó homem! deixa-te lá de cantar loas à água e vai tomar banho... Olha a bela figura em que te apresentas se alguém nos aparece aqui a ler?!" De tão agastada com o companheiro estava Berta que, por momentos, deixou verter da chávena que segurava com a mão esquerda, um pouco de chá de tília que manchou a alva folha de papel onde descrevo tão matinal cena conjugal. "Isso são os nervos a falar por ti que se te olhares bem ao espelho... verás que os teus modos de trincar uma torrada com manteiga, mais parecem os de uma tocadora de harmónica" redarguiu Gumercindo sempre de carinha na água e desta vez com riso tal, da própria graçola, que os estremecimentos lhe punham em destaque, todos os ossos do escanzelado físico. Na rádio local, a voz de Jorge Palma entoava "... nós já vivemos cem mil anos, encosta-te a mim. Talvez esteja a exagerar... ". Eu, que prefiro as coisas com conta, peso e medida e porque ainda não tomei o pequeno-almoço, saio de mansinho do texto. Não sem antes -aproveitando o acalorado diálogo do casal, levar a fatia de bolo que Berta não há-de comer.
Nuremberg, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
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O autor lamenta que o prometido texto sobre a "cadeira eléctrica", não possa ser editado de momento. Um arreliador curto-circuito, foi a causa de tal impedimento.

Wednesday, January 16, 2008

EXECUÇÕES















Condenados à pena capital em tribunal popular, foram executados na praça pública -bem composta de assistência entusiasta e conhecedora, pelo processo mais apreciado e aplaudido de então: a guilhotina. Antes, passaram pelo estrado, grupos etnográficos de todo o país, foram declamados alguns poemas alusivos ao evento e lidas mensagens de familiares distantes e inimigos de estimação chegados. Antonieta Maria, Josefa Vacondeus, Luis Saudade e Pedro Hera, acusados de se dedicarem à prática de fumar em diversas casas de pasto da região e de apelarem à insubmissão social pela via referendária, subiram um a um, os degraus de acesso ao instrumento cortante. Numa curta declaração, Antonieta lamentou não ter podido trazer o vestido branco que seria muito mais contrastante (e espectacular) com o vermelho-sangue. Josefa contou uma anedota com molho de caril e, sem que ninguém o esperasse, beijou longamente na boca, Luis. Este, depois de ganhar fôlego, afirmou que "com preliminares assim, não se importaria de ser guilhotinhado mais vezes". Pedro, numa atitude de protesto, limitou-se a rasgar o cartão de sócio do Desportivo Côr da Esperança FC. Raimundo B., taberneiro de profissão e carrasco nas horas de ócio, cumpriu bem a sua missão no tocante às duas senhoras: cabeças cortadas cerce para o cesto e longos aplausos da multidão. Ou porque se entusiasmou demasiado ou porque antes do acto se alheou das suas obrigações ociosas no respeitante à afinação do cutelo, não lhe correram tão bem as prestações com Luis e Pedro. Os cortes pelos umbigos, mereceram brava pateada e assobios. A temperatura estava amena e convidava para um passeio pelo parque das merendas após o lúdico acto.


Nuremberg, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
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O autor previne que a primeira figura que se distingue à esquerda da imagem não é parte constante desta "execução". No caso, é de uma execução fiscal que se trata.

Friday, January 11, 2008

PASTORÍCIA RODOVIÁRIA ou O CONTADOR DE ALMAS















Nunca se tinha atrevido a contar carneiros enquanto conduzia porque não desejava voltar ao seu sonho de criança: ser pastor. Não destes pastores de hoje, equipados de iPod´s que lhes transferem para as mentes solitárias a voz desnuda cheia de promessas de Ana Malhoa, na companhia de rottweilers treinados para esfrangalhar quem se dedique a deitar a mão ao alheio (que os tempos já não estão para cães afáveis) e sempre atentos ao telemóvel e à patronal voz que atendem (e às suas exigências) com um "Yes Sir!" de sotaque regional, que o inglês de Sócrates tinha obrigatoriamente de chegar aos sítios mais ermos deste país de chocantes e tecnológicos contrastes. Pastor de rebanhos inquietos e contemplador de ocasos indecifráveis teria sido a sua vocação.. que não se concretizara por vontade do pai que o quis ver à frente do negócio de família. O rebanho que se estendia à sua esquerda desafiava-o. Embora temeroso arriscou e, olhando fixamente os animais, contou: "um carneiro, dois carneiros, três carneiros, quat... " O polícia que chegou primeiro junto ao carro semi-desfeito, comentou para o colega "Este gajo ficou com olhos de carneiro mal-morto!"
Algures em trânsito, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
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O autor informa que a fase de "textos com sangue no asfalto" termina aqui. Tendo previsto que se seguiria uma outra denominada de "sangue do meu sangue", optou por não o fazer (para já... ) face a alguns comentários dos seus leitores mais sensíveis. Assim, prevê que os próximos textos abordarão a temática "pena de morte: da guilhotina à cadeira eléctrica".
Informa ainda o autor, que na imagem do texto actual, se encontram vinte e dois carneiros (22). Se o leitor ao clicar para aumentar a imagem, der por falta de algum, favor comunicar para o 993 222 788. Grato.

Sunday, January 06, 2008

CONTAR OS DIAS

















"Mas qual é o meu papel nesta fotografia?! Porque é que me pedes para cruzar os braços numa atitude de quem espera que a espuma dos dias do ano que passou, me lamba os sapatinhos que fizeram sucesso (e me custaram os olhos da cara!), pela noite fora e madrugada adentro da passagem de ano? Desculpa que te diga, mas tu és mais exigente que o Almodovar! Pronto, eu viro a cara para a minha esquerda. Se dizes que é o meu melhor lado, tu lá deves saber... que para mim, o meu melhor lado é sempre em frente. Assim está bem? Pensei que me ias pedir para fazer um sorriso, mas estou a ver que és daqueles que preferes as mulheres sérias... E essa espuma quando é que chega, cariño?"
Em imoderada velocidade, chegou um Seat azul metalizado que foi à sua vida depois de dar uma valente panada em Mercedes Velasquez. Branco e atónito, fiquei ainda com um dos sapatos da minha modelo ocasional, na mão. Manchado de espuma vermelha de um dia trágico.
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Este é o exemplo de texto que não se recomenda a pessoas mais ou menos impressionáveis. Se o leu sem pestanejar, os meus parabéns. Se ficou incomodado, reitero os parabéns: é uma pessoa com sentimentos.
Granada, 2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.