Tuesday, January 31, 2006

TENTAÇÃO



















Apesar do vento frio que lhe fustigava o corpo, o olhar deslumbrado de Ofélia não se descolava das pequenas figuras que se exibiam na montra da singela loja de bairro. Depois, uma força maior que ela, impeliu-a para a porta e entrou lentamente, tremendo da ousadia. A mulher que se encontrava atrás de um balcão repleto de caixas com artigos diversos, franziu o sobrolho à aparição de tão peculiar pessoa e de trajar ainda mais extravagante.
Ofélia pressentiu que não era bem-vinda, mas isso em vez de a assustar, estranhamente transmitiu-lhe mais força. Toda ela era um mar de calmaria quando docemente perguntou apontando para a montra «São gémeos?». Surpreendida num primeiro momento, a mulher sopesou a questão, empalideceu e a resposta saiu-lhe nervosa e crua «Você pensa que vem para aqui gozar com quem trabalha?! Sua merdas! Saia-me já daqui para fora!!».
Na rua, ouviu-se o aproximar da sirene de uma ambulância; parou exactamente ao lado da loja singela de bairro. Dois homens de bata branca entraram e sem mais aquelas, num abrir e fechar de olhos, levaram Ofélia para longe do nosso quotidiano.
Foto de: Alberto Oliveira.

Saturday, January 28, 2006

NAVEGAÇÃO REAL ou VIRTUAL?


























Este fim de semana o que prefere fazer? Passar por Santa Apolónia, entrar no Princess Danae que ali se encontra acostado e pedir ao comandante que o leve a fazer um cruzeiro rápido por algumas cidades emblemáticas marroquinas, como será o caso de Casablanca e Agadir? Se o homem estiver de acordo (e a restante tripulação... ), não precisa de encher a mala com roupa; por esta altura do ano, o clima por lá está muito melhor que este que por aqui se faz sentir. Ah! os dois dias do fim de semana não chegam para um mini-cruzeiro; diga ao seu chefe, ao seu director ou ao seu patrão, que só regressa daqui a dez dias... no mínimo. Se não trabalha, nem pense duas vezes no assunto; embarque já!
Se a primeira proposta não lhe agrada (?!) porque não apanhar o Palmelense na estação Fluvial do Cais do Sodré, atravessar o Tejo e ir almoçar ou jantar na outra banda? Não é necessária a autorização do patrão do cacilheiro, nem passaporte ou de se justificar perante a entidade patronal; basta apenas adquirir os títulos de transporte, não esquecer de que se deve agasalhar bem e de não abrir nenhuma janela com a embarcação em movimento para fazer uma fotografia de viagem. O vento vindo do rio, gela e há passageiros capazes de tudo para não apanharem uma valente gripe; zele pela sua integridade física. E fale português; vão entendê-lo na perfeição nos restaurantes onde a oferta é quase ilimitada, devendo no entanto levar a carteira bem recheada.
Estas interrogações-sugestões embora se localizem na área da Grande Lisboa, não deixam de ser válidas para os bloggers do resto do país. A capital está a um passo de todos; menos dos que detestam navegar...
Fotos de: Alberto Oliveira.

Thursday, January 26, 2006

O CÃO PRODÍGIO















Ora aqui têm! E não me venham com reclamações que o animal não é nem pouco mais ou menos parecido ou da raça do Milou do Tintin. Não é. E de que estavam à espera, posso saber? De milagres tecnológicos? De clonagens caseiras?! Ou, provavelmente, que algum canino me cravasse a dentuça enquanto eu lhe disparava a máquina fotográfica na focinheira... para se partirem a rir com a desgraça alheia?!
Este animal foi por mim seleccionado (atendendo aos vossos insistentes pedidos...), porque de entre todos os que fotografei, reune predicados absolutamente originais. Se atentarem bem na imagem, hão-de reparar que ao bicho lhe faltam as duas patas traseiras. Melhor ainda; consegue equilibrar-se nas duas restantes patas! É evidente que só pode ser um cão habituado a muitas e aventurosas experiências e de que Tintin, na falta de Milou por lesão, muito se orgulharia de ter no banco...
Mas há mais. Dos cinco cães de que captei imagens, num trabalho de grande rigor profissional e risco sempre presente, este, foi o que menos perguntas me fez, não evidenciou sinais de vedetismo, garantiu não ser apresentador de continuidade televisivo nem radialista, que não escreve no Expresso, nem é um fazedor de opinião com um penteado estrambólico, não preside a uma SAD futebolística nem a uma Câmara Municipal, não nasceu em Boliqueime, nem é poeta, não frequenta a praia do Vau, não fala da despenalização do aborto quando se discute se há vida em Vénus, não sabe dançar e não percebe peva de leis. Tão pouco, alguma vez ouviu falar numa prancha de banda desenhada. Em síntese: é um autêntico cão-comum. Façam-lhe uma festa no pêlo que bem merece...
Foto de: Alberto Oliveira.

Monday, January 23, 2006

UM ENCONTRO INESPERADO



















Encontrei-o neste pretérito sábado, num daqueles passeios que faço para debelar os efeitos menos positivos de digestão de um lauto almoço de fim-de-semana. Devo prevenir que no meu bairro, já ninguém estranha a visita de uma figura pública. E se fosse necessário prová-lo, bastaria dizer que nas duas últimas semanas isso foi uma constante no que se refere aos candidatos presidenciais; mais as suas comitivas, também elas recheadas de outras figuras não menos públicas. E distribuiram sorrisos, beijos, abraços e bandeirinhas de tal modo, que uma qualquer testemunha fora do contexto, garantiria a pés juntos que as tais figuras públicas e seus acompanhantes não menos figuras públicas, nunca fizeram outra coisa na vida, senão conviverem quotidianamente connosco. Um deles -e não vou citar aqui o nome por razões óbvias, abraçou-me tão efusivamente, que tive sérias dúvidas que não fosse um familiar emigrante de cujas feições, por via do tempo, me tivesse esquecido.
Mas esta figura, reconhecida nos sete cantos do mundo, jamais vaticinei topá-la ao virar da esquina do prédio da Farmácia Moderna, agora totalmente remodelada, que os seus setenta anos bem precisados estavam. Pela cadência apressada, Tintin (pois dele se tratava... ) deu-me ideia -ao contrário das outras figuras públicas, de não pretender ser reconhecido e as bochechas coradas até me sugeriram ter sido alvo de um encontro menos oportuno. Fosse pelo que fosse, o jovem levava asas nos pés e com tal velocidade, não seria difícil admitir que dentro em breve se encontrasse na fronteira. Continuando o meu caminho, de passada bem mais calma, fui magicando no reboliço que seria no bairro, a chegada de Dupont et Dupont, do Capitão Haddock, do professor Tornesol, do general Alcazar e da diva La Castafiore. Sorrisos, beijos, abraços e bandeirinhas, chegam por agora. Deixem-me espaço às pessoas comuns por uns tempos, tá?!
Foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, January 19, 2006

O GATO PRÓDIGO



















Já não futurava pôr-lhe mais a vista em cima. Filho orfão de uma gata vadia que acabou os dias debaixo do rodado de um pesado que transportava enlatados de comida para animais domésticos, dei-lhe um lar e estatuto social que muitos gatos ambicionam mas a que poucos chegam. Não lhe exigi nada em troca; não era um empregado porque nada fazia... limitava-se a comer e a dormir. Nunca o impedi de dar uma escapadela para as suas visitas às fêmeas da vizinhança. Reconheci-lhe a independência tão comum a estes felinos, nunca o obrigando a servir de decoração caseira ou a fazer habilidades circenses. Sobre este animal não se abateu o cutelo (ou o bisturi?) da limitação sexual; não gostaria que as gatas cá do bairro me olhassem de soslaio por ter causado a castração do Rikardo. Sim; dei-lhe este nome porque me pareceu ir-lhe a preceito. Era o seu único defeito: os nervos, que o atraiçoavam quando em corrida se atirava aos pássaros, que no quintal lhe passavam por cima da cabeça; nunca o vi apanhar nenhum... Durante quatro meses, as nossas relações pareceram-me de mútuo respeito e tudo parecia correr no melhor dos mundos. Um belo dia, sem uma explicação?! partiu.
Não posso dizer que não me custou. Mas como democrata que sou, entendi perfeitamente a liberdade da sua opção.
Hoje, decorridos que foram seis meses de ausência, ouvi um miado familiar à porta. Era o Rikardo; escanzelado, olhos ramelosos e o pelo baço e sujo de óleo dos veículos sob os quais porventura muitas noites adormeceu. Cabisbaixo, os seus olhos imploraram o perdão pela saida impetuosa e por umas espinhas de carapau. Franqueei-lhe a porta por agora e até retemperar forças e engordar. Depois, estou a pensar vendê-lo ao Alcides do restaurante A Panela Ao Lume Que o Arroz Está Cru, cuja especialidade do tasco é Coelho à Casa.
Foto de: Alberto Oliveira.

Monday, January 16, 2006

SEM HISTÓRIA




















Se há imagens que aparentemente, de tão banais que são, não servem de suporte a uma daquelas histórias que por aqui vos deixo regularmente, a primeira foto bem poderia ser uma dessas. Talvez por isso a tenha deixado de lado e o seu destino estava irremediavelmente traçado; lixo com ela.
Hoje, ao seguir idêntico percurso que fiz no dia em que tirei essa fotografia, no mesmo local e há mesmíssima hora! (que os elementos em ficheiro não me deixam mentir...), alguma força mais forte que eu, me induziu a clicar o botão do obturador da câmera, fazendo uma foto a partir do interior do autocarro em que viajava e que resultou na segunda imagem que aqui edito.
Entre a primeira e a segunda fotografia há uma distância de seis dias. Peço-vos que a seguir vejam as diferenças entre ambas. Incrível não é?! Já me tinha apercebido que algo de invulgar se estava a passar comigo pois que os sinais têm sido mais que muitos; da transformação corporal à visão periférica... Mas por favor! não me telefonem a marcar consultas nem me peçam milagres para já! Deixem primeiro inscrever-me na Ordem...
Fotos de : Alberto Oliveira.

Friday, January 13, 2006

TREMORES



















É verdade que as temperaturas têm estado baixas aqui para as bandas do centro-sul; o que nada tem de surpreendente porque estamos no Inverno. Tão pouco atingem valores que nos fazem bater o dente ou fazer tremer o cabedal desmesuradamente. Os tremores que titulam este texto são de outra ordem e de origem situada nas entranhas deste planeta.
Nas duas últimas semanas e segundo as leituras dos sismógrafos que medem estes fenómenos, Portugal tremeu amiudadas vezes; por via de abalos de fraca intensidade e das suas réplicas. Que são perfeitamente naturais, que não causaram vítimas nem danos materiais e que em grande parte nem sequer foram sentidos pela maioria da população dos locais mais afectados, informou-nos quem sabe da matéria.
De tão preocupada com os graves problemas sociais que a afligem, anda a maioria da população portuguesa, que nem lhe sobra tempo para pensar (e sentir) em abalos sísmicos de fraca intensidade. Quem dirige os destinos da nação, até o gosto retirou ao cidadão comum, por poder testemunhar e ter (opinião), no local de trabalho ou à mesa do café, destes incidentes que da mãe natureza derivam.
Não pretendendo ser mais -nem menos, avisado que os meus concidadãos, uma destas manhãs quando me levantei e assomei à janela, percebi que algo não estava certo na paisagem urbana. Não cuidando saber se tal se devia ao facto dos meus olhos ainda se encontrarem mal despertos de um sono retemperador, fiz a fotografia que hoje vos mostro. Sem truques ou montagens enganadoras; tão verdadeira como a minha palavra.
Foto de: Alberto Oliveira.

Tuesday, January 10, 2006

O NOVO INQUILINO



















O GUITARRISTA

Percorro-te
e tu és forma de vida
de cordas feita.
Frementes
os meus dedos dedilham-te
arrancando do teu côncavo âmago
sons gemidos de prazer
que são a música do meu fado.



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Ergueu-se lentamente da cadeira com a guitarra bem apertada junto ao peito. Suavemente deitou-a na cama, olhando-a embevecido por breves momentos. Correu as persianas e apagou a luz do quarto. Segundos depois, um trinado lancinante rasgou o silêncio da rua.
Foto de: Alberto Oliveira.

Saturday, January 07, 2006

O REGRESSO do ANIMAL com ASAS



















É incontornavel a latosa do bicho! Após tantos reparos e avisos por invasão de casa alheia, de amostragem de cartões amarelos e vermelhos por defecar em solo privado e de uma ordem de expulsão (escrita) deste território por não cumprimento da Constituição cá do burgo, eis que regressa, fazendo ouvidos de mercador à minha respeitavel pessoa e (quase que juro!) com um sorriso sarcástico como quem diz «Estou-me nas tintas para ti; ditador do caraças, anti-solidário das aves oprimidas e escravizadas!» ao mesmo tempo que piava a Internacional. Ei-lo, hoje, em primeira mão e às primeiras horas da matina -que o gajo quando tem um alvo definido não se atrasa na viagem, impante e gozão pousado na cama das visitas.
Que hei-de fazer a uma coisa destas?! Levá-lo a increver-se no ensino recorrente para sair de lá mais burro que pombo?. Filiá-lo num partido político para um dia destes me aparecer à frente do aparelho e candidatar-se a deputado ou quem sabe?! a primeiro-ministro? Apresentá-lo aos dirigentes das SAD´s desportivas de maior culto e iniciar logo a seguir o negócio da compra e venda de jogadores e mais para a frente negociar com presidentes de câmaras, construtores civis e por aí fora?! Não! É hoje, definitivamente, que vais para o tacho. «Maria! lava o arroz que já temos carne!».
Foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, January 05, 2006

O MÚSICO SEGUINTE



















Costuma estar lá sempre. Numa daquelas varandas largas -agora fechadas com vidros e persianas que mais parecem gaiolas, do prédio da esquina e é raro o momento em que não o descortine naquele que será o seu sítio de evasão. De manhã, à tarde ou à noite, a sua presença é uma constante. Ele e o piano, que mais adivinho que avisto.
Na noite de fim do ano assomei-me à janela, atraido pelo ruido incomum em outras noites, de batidas ritmadas em tachos e panelas, dos apitos de alguns barcos no Tejo e do fogo de artifício. Apenas uma luz incide sobre algo branco que será decerto a pauta musical (a esta distância é impossível garanti-lo). Os braços longos, saidos do tronco ligeiramente curvado, tão depressa se movem a uma velocidade estonteante, para logo adquirirem uma cadência rítmica moderada. E as mãos, se por breves momentos pairam no ar, logo atacam de seguida em voo picado, as teclas que não distingo. Dessa vez e ao contrário do que é hábito, tinha alguns vidros abertos; porque alguns acordes dispersos se deixavam ouvir no meio da confusão sonora. Chopin? Vivaldi? Não sei, tal como não saberei se pretendeu associar-se naquela noite à comemoração popular da passagem de mais um ano e o início de outro.
Hoje, quando o pôr-do-sol me entrou pela casa dentro, pintando de laranja as paredes da sala, reparei que as persianas brancas da varanda-marquise do pianista, estavam pela primeira vez completamente cerradas. Os meus olhos desceram mais um pouco até à rua. Ao lado dos contentores do lixo, jazia, feito em pedaços, os restos de um piano. Quem será o próximo inquilino? Um saxofonista?
Foto de: Alberto Oliveira.