Thursday, January 05, 2006

O MÚSICO SEGUINTE



















Costuma estar lá sempre. Numa daquelas varandas largas -agora fechadas com vidros e persianas que mais parecem gaiolas, do prédio da esquina e é raro o momento em que não o descortine naquele que será o seu sítio de evasão. De manhã, à tarde ou à noite, a sua presença é uma constante. Ele e o piano, que mais adivinho que avisto.
Na noite de fim do ano assomei-me à janela, atraido pelo ruido incomum em outras noites, de batidas ritmadas em tachos e panelas, dos apitos de alguns barcos no Tejo e do fogo de artifício. Apenas uma luz incide sobre algo branco que será decerto a pauta musical (a esta distância é impossível garanti-lo). Os braços longos, saidos do tronco ligeiramente curvado, tão depressa se movem a uma velocidade estonteante, para logo adquirirem uma cadência rítmica moderada. E as mãos, se por breves momentos pairam no ar, logo atacam de seguida em voo picado, as teclas que não distingo. Dessa vez e ao contrário do que é hábito, tinha alguns vidros abertos; porque alguns acordes dispersos se deixavam ouvir no meio da confusão sonora. Chopin? Vivaldi? Não sei, tal como não saberei se pretendeu associar-se naquela noite à comemoração popular da passagem de mais um ano e o início de outro.
Hoje, quando o pôr-do-sol me entrou pela casa dentro, pintando de laranja as paredes da sala, reparei que as persianas brancas da varanda-marquise do pianista, estavam pela primeira vez completamente cerradas. Os meus olhos desceram mais um pouco até à rua. Ao lado dos contentores do lixo, jazia, feito em pedaços, os restos de um piano. Quem será o próximo inquilino? Um saxofonista?
Foto de: Alberto Oliveira.

40 Comments:

Blogger I said...

Amigo Legível , o meu vizinho do sexto esquerdo (dois andares acima do meu) é...saxofonista. É dos poucos que atiram um bom dia quando nos cruzamos nos elevadores, sorri sempre, é simpático.Nem sequer faz jus à velha ideia feita de que os músicos são todos neuróticos autistas.Mas...tem um grave defeito: ensaia em casa. Um drama...sobretudo porque para chegar aos calcanhares do Coltrane ainda lhe falta muito!

5/1/06 10:03  
Blogger Fátima Santos said...

Então um bom dia e boa música! (a escrita por aqui anda apurada. gosto!)

5/1/06 10:10  
Blogger Lia C said...

... e por debaixo dos destroços do piano as colcheias, desgrenhadas, tentam pentear-se e recompôr-se a tempo da chegada do teu novo vizinho. Que não será saxofonista mas sim magro e muito míope. Mesmo assim verá um pôr-de-sol a cada meio dia.

Beijos de laranja muitos

5/1/06 10:39  
Blogger sotavento said...

Bem, bem, mais me parece "um músico por ano"!... :)

5/1/06 12:09  
Blogger Rui said...

Faço votos para que não seja um quinteto de jazz recém formado, sem sala de ensaio e de parcos recursos, a dividir despesas.

5/1/06 15:31  
Blogger JL said...

O amigo Legível saí-me um Voyeur, para não dizer cusco, de primeira classe :-)
Pensei que só existissem coisas assim aqui, na aldeia.
E logo por um pianista. Se fosse por uma pianista, agora por um!!! Não o fazia assim, caríssimo, não não! :-)

5/1/06 17:53  
Blogger  said...

Seguindo a I&C...
Há uns anos dois vizinhos, entre sorrisos, no elevador, disseram-me que se entretinham à noite a ouvir uns acordes de guitarra.

Nunca mais toquei no meu quarto.

Pobre "homem do piano" deve descoberto que o observavas ficou, talvez, suponho, envergonhado, a um "olhar legivel" deve ter-se sempre respeito!

5/1/06 19:04  
Blogger amok_she said...

...um pouco forçado, esse final!;-))) ...parece aqueles filmes a quem cortaram a verba pra fita... eheheh

...meu caro, nenhum pianista trataria assim um piano![desconheço um smiley p/ horrorizada!?!]...por mt desafinado q fosse...o pianista, ou o piano...;-)

5/1/06 20:55  
Blogger manhã said...

Foi um adeus, um adeus ao piano, o dele e o teu. Estranho como uns acordes longínquos de piano podem dar a uma atmosfera de betão um tom mágico de uma qualquer rua antiga cheia de promessas de encontros, poderia ser Paris, lembrei-me de uma experiência que vivi em Paris, em que na janela em frente, à noite, um fulano solitário dançava ao som da música.

5/1/06 21:02  
Blogger segurademim said...

Da minha janela vejo uns vizinhos de binóculos a "espiar" a vizinhança!!!
Puxa, até parece o filme do Hitchcock... a janela indiscreta!
Esse título do músico seguinte parece a fila para a vacinação??!!
Olha lá, em vez de encherem a casa com músicos, não era melhor ser cheia de maestros*

*culinários

;)

5/1/06 21:35  
Blogger Lagoa_Azul said...

Que musica tão triste!!!...
Tens a certeza que era um piano?!!
Cá por mim aposto que o leitor de dcs de avariou e para disfarçar mandou o piano á vida, o piano como é bem mandado, e com a crise que por ai vai, ou tava na recolha e foi isso que observaste, ou tava a cuscar a vida do caixote do lixo...
E pronto, viveram felizes para sempre, ...ai não acaba asssim???!!! tão acaba como???...
Hoje vou embora amanha passo ca a ver como chegou o fim.
Beijos com carinho e ouve George Nascimento a tocar piano esse sim é lindo :o)

5/1/06 21:43  
Blogger JPD said...

O Rão Kiao costumava dizer que tocava saxofone por esse instrumento ser uma extensão da voz. Bem tocado, esconderia a incapacidade de cantar.
Sendo a música o melhor, quase excelente meio de comunicação -- na popular há por aí uma certa radicalidade que me surpreende...malta que comunica mal e mal se dá com os loquazes (digo eu!) -- seria terrível que outro músico se estatelasse ou perdesse os encantos do instrumento abandonando-se ambos.
Um abração

5/1/06 22:42  
Blogger armando s. sousa said...

Começaste o ano a dar-nos música!
Legível, desejo-te bom ano.
Um abraço.

6/1/06 18:49  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para i & c:

Não me importava de ter um vizinho músico; que não ensaiasse em casa...
Há uns anos, quando pretendi descobrir em mim alguma desconhecida vocação artística, deu-me para tocar harmónica -popularmente conhecida por gaita de beiços. Disseram-me que havia dois modos de o fazer; aprendia música ou tocava de ouvido. Achei de mais para o meu intelecto; mas afinal era para tocar com os beiços ou com os ouvidos?!

6/1/06 20:56  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para seila:

Bom dia (ou boa noite) também para ti! Se possível, com fundo musical.

Aquilo que tu chamas "o apuro da escrita", deve-se aos temperos...

6/1/06 20:59  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para lia c.:

O teu comment é paralelamente poético e... musical. As colcheias desgrenhadas sob os destroços do piano são a prova disso.
Acrescento que, os homens do carro do lixo, ao removerem os tais destroços, encontraram também uma clave de sol e um enlaçados no amor e na morte e uma oitava com a cabeça decepada. Um horror...

Beijos.

6/1/06 21:12  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para sotavento:

Não é por ano, não; que está a chegar mais outro.

6/1/06 21:14  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para rui:

Quem sabe?! as coisas da arte andam também tão por baixo neste país que não me admira.
Mas estou mais inclinado para um (ou uma) tocador de harpa, que é um instrumento de fácil arrumação devido às suas reduzidas dimensões?!

6/1/06 21:20  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para @:

O piano poderia ser de enorme qualidade e estar afinado. Resta saber se o artista que lhe arrancava as notas, lhe dava bom uso...

6/1/06 21:23  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para flor:

Obrigado pela tua simpatia... que não mereço; sempre olhei para uma pauta de música como um boi (salvo seja!) para um palácio...

6/1/06 21:27  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para jl:

O meu caro amigo equivoca-se ou está a desfrutar-me à grande e á francesa. Confundir uma despretenciosa crónica ficcinada de costumes com voyeurismo e cusquice, não lembra ao diabo.

Que na sua aldeia ainda estejam a discutir o sexo dos anjos (e das anjas...) por esta altura do campeonato e daí decorram traumatismos graves e irreversíveis, é um problema que não posso de todo resolver.

6/1/06 22:14  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para pé:

Há mesmo gente que não quer entender! estavas apenas a difundir arte (a tua arte...)gratuitamente pela vizinhança e... de borla!

Espero que não tenhas deixado de tocar por esse insólito facto.

Se o "pobre homem do piano" existisse de facto, acho que continuaria a tocar...

6/1/06 22:21  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para amok_she:

Andas a ver muito cinema, andas...
Nem sempre as coisas me correm como pretendo. Uma coisa é escrever um guião, outra a direcção de actores, outra ainda a montagem.
Menos um sucesso de bilheteira...

Mas eu sei lá se foi o gajo que atirou o piano á rua ou alguma comissão popular contra a poluição sonora!?

6/1/06 22:29  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para manhã:

A música tem esse efeito mágico no urbano e na... urbanidade. Influencia positivamente as pessoas e os cenários do teatro da vida. E as janelas das casas com pessoas dentro, são uma atracção para o imaginário.

6/1/06 22:36  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para segurademim:

Pessoas a espiar de binóculos as casas de outras pessoas, é crime (ver Constituição in Direitos, Liberdades e Garantias Individuais).

E os músicos não precisam também de ser vacinados?!

Vou ver o que se pode arranjar...

6/1/06 22:40  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para lagoa azul:

Não tenho certezas de nada que escrevo; se assim fosse não escrevia.

Vês como imaginaste uma história?! com um fim feliz?.

Beijos.

(O George toca bem? Não conheço...)

6/1/06 22:44  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para pilantra:

Cornetas bigodes de gatos assanhados trompetas trombas de elefante tridentes estropiados o homem gigante clarinetes corte & costura clarinda vocalista dos contra natura sanfona que me dá cabo da mona sinfonia que me agonia acordes que se ouvem do rio não choro agora sorrio.

Quem nos manda viver?

Abraço.

6/1/06 22:54  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para jpd:

O Rão lá se vai defendendo sem cantar.
Do pessoal que comunica mal... é um problema educacional e com que nos defrontamos todos os dias. Se o exemplo vem de alguma comunicação social...
Da relação desses com os loquazes, também está tudo explicado; qualquer programa televisivo que se dê ao trabalho de entrevistar crianças tem a tarefa facilitada. As respostas são tiradas a ferros para um sim um não ou apenas um encolher de ombros. Com tão bons inícios como é que esta gente há-de falar... mais tarde?! Se aliarmos a isso a natural predisposição para o fatalismo, a queixa continuada, ou a concorrência desleal, como havemos de estar dispostos a umas boas gargalhadas e a uma conversa continuada e interessante?!

Um abração.

6/1/06 23:11  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para manuel:

Folgo também em ver-te de regresso às lides!... e com os autores da música dita erudita, em dia.

Abraços.

6/1/06 23:14  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para armando ésse:

A música possível, que os meus stocks nesta área são escassos...

Abraço.

6/1/06 23:16  
Blogger amok_she said...

Mas eu sei lá se foi o gajo que atirou o piano á rua ou alguma comissão popular contra a poluição sonora!?

...hummmmm...pois....és capaz de ter razão!?...eu e as minhas apressadas leituras dão sempre em conclusões igualmente apressadas...ñ é em vão q me meto em brutas trapalhadas por causa delas!;-)

...mas...é q eu, piano(s) e pianista(s) somos assim como...uma atracção (fatal) por abismos...é uma relação de amor_ódio q nem te digo, nem te conto...ñ é em vão q aquela "musiquinha" permanece(rá!) lá prás bandas do 'amok'...;-)

6/1/06 23:57  
Blogger SalsolaKali said...

...na volta será um Escocês de Gaita-de-foles ao ombro...
Hummmm...
Já imaginas-te como seria? Anoitecer ao som de uma Gaita-de-foles?

Ou então cansou-se do piano e resolveu mudar, mesmo, de vida :)
BJ GR
SKSK

7/1/06 00:01  
Blogger 919 said...

...e umas fusas e semifusas furibundas tentando fugir dumas pautas manipuladoras, enquanto a clave de sol e o dó trá-lá-lá e a oitava procurava a cabeça e as graves pensavam na lei da gravidade... Que cena dalinesca!...

7/1/06 01:05  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para amok_she:

Se não escrevessemos o que nos vai na alma, seria menos bom (hoje estou positivista!)por dois motivos: deixávamos que as palavras se afogassem na garganta (morte nada simpática...) e não deixávamos um sinal que fosse da nossa identidade.
Esconder-mo-nos de nós próprios deve ser aflitivo.

7/1/06 09:57  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para salsolakali:

É óptimo ler comentadores com esta qualidade! Raios & coriscos se me estava a lembrar de escoceses (e de escocesas... ) e de gaitas de foles... Não. Não quero imaginar um anoitecer assim. Prefiro adormecer embalado pelos acordes de uma harpa, tocada por uma garça linda de morrer.

Deve ter sido mesmo isso; de pianista a electricista foi um salto, que a terminação ajuda..

Bjs.

7/1/06 10:09  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para lélé:

semi-fusas
dós de peito
e as musas e as musas
que nunca estão a jeito;
das pautas já nada digo
nem das claves de sol
que isto só por castigo
de tão imenso é o rol
das músicas e dos sinais
não lhes tocarei jamais.

7/1/06 10:17  
Blogger Azul said...

Estou estarrecida com este texto. Nã consigo dizer-lhe nada mais do que isto. Perdoe a minha impossibilidade. Fantástico. Um beijo. Azul.

8/1/06 15:34  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para azul:

Recomponha-se por favor; afaste os olhos do texto e diga «este gajo é doido varrido!» dez vezes seguidas, firmemente e de olhos bem cerrados. Abra-os agora e verá que já me consegue comentar... no próximo post.

Beijo.

8/1/06 20:19  
Blogger Mónica said...

cacém?

14/1/06 21:23  
Blogger Alberto Oliveira said...

Para semcantigas:

... frio...

15/1/06 16:52  

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