O PROCESSO
Foi naquele café-pastelaria de esquina do Largo do Camões com a Rua do Alecrim, que te encontrei. Tinha acabado de entrar e pedido ao balcão um marlboro-que-mata-que-se-farta e deitado um olhar ocasional em volta, quando te vi. Eras o único ocupante de uma das poucas mesas do espaço acanhado, antigo e a pedir uma limpeza geral ou a mudar de ramo de actividade. Aparentemente, dir-se-ia que lias um livro que seguravas com uma das mãos, enquanto a outra mantinha no ar à altura da boca, uma chávena de café. No entanto, num olhar mais atento, reconheci-te os olhos parados em direcção ao chão e talvez por isso mesmo , sem horizontes concretos.
Deixei o gajo do balcão, com cara de fuinha, de maço de tabaco na mão a falar sózinho e perguntei-te se me podia sentar. Passados alguns segundos (e não foram poucos) levantaste a cabeça, olhaste-me sem me ver, pousaste a chávena na mesa e fizeste um gesto largo com a mão como quem diz: "estás à espera de quê?!". O cara de fuinha perseguiu-me com o maço de tabaco e, com maus modos, inquiriu se eu "ia querer mais alguma coisa?"; devo ter conseguido fazer o meu pior semblante e retorquido com um "quando e se quiser, peço!" que o tipo rodou os calcanhares e bateu em retirada.
Enquanto isso, mantiveste-te aparentemente sereno, sem um gesto que fosse e os olhos fixos num ponto que de certo me ultrapassava. Disse-te que já era tarde, muito tarde mesmo e que se quisesses fazia-te companhia até casa, onde, quem sabe, os teus já estariam em cuidados com a tua demorada ausência. Um meio-sorriso irónico e indiferente foi a tua resposta. Fechaste o livro (só tive tempo de ver o autor: Kafka) e levantaste-te. Segui-te em direcção à porta mas ainda consegui ouvir um fulano que estava numa mesa próxima, dizer para outro: «Aquele tipo, o mais novo, bom aspecto, passou aqui o tempo todo a falar com ele próprio; estes tempos que correm, fazem mesmo virar a cabeça ao pessoal...».
17 Comments:
Multiplicas.te?!
Invade.me Hamlet, invadem.me as palavras, invade.me cada um de vós, invade.me a divindade...fragmento o meu ser com fantasias engendradas ao longo dos tempos e dos espaços...no entanto, procuro incansavelmente a unicidade plena e segura de si...mas tudo é em vão!! Tudo mexe, tudo vive e esses monstros alternantes dão forma de caleidoscópio à vida singela que tomo nas minhas mãos. Cansa.me já a rotina da identidade própria, almejo alteridade para alcançar uma mutação sucessiva de seres fantásticos que me povoam o interior da alma. Sim, multiplico.me e intensifico a minha, a tua e a nossa vida!!!
(conversaFi@da. 6june05)
fico imensamente grata pelas tuas palavras, acima de tudo faço-o com prazer. :) mais uma vez, gostei de ler o que escreveste.obrigada* beijo
Estranho... Não sei se chamaria despersonalização, ou alteridade, a esta vivência do eu, por mais pormenores que nos saltem à vista. Mas mesmo que o eu fosse o outro, já que ambos, de todas as formas, se encontram e se complementam, o sentido seria, penso eu (!?), o mesmo. Não sei se se deve a estes tempos de hoje, já que esse "eu no café" tem vários contornos de intemporalidade. Não o tempo do café, mas o para e por além dele, talvez seja isso.
Desculpa a divagação vaga.
abraço
Há alturas em que perdemos a noção do que são os nossos pensamentos ou realidade. Falamos quando pensamos estar a pensar; pensamos quando devíamos estar a falar.
Imagino uma espécie de transe solitário que surge quando menos esperamos. Acontece-me quando escrevo, nunca me consigo lembrar do que acabei de escrever. E quando leio, parece que leio as palavras de outro.
E o mesmo com a vida: parece que vivo a de outrém e não a minha.
Mas gosto da R. do Alecrim. Vai àquele bar perto do Adamastor, com, as fotos dos actores nas paredes e o jazz. Sabe bem lá estar sozinho. Ou acompanhado.
Então? Qual deles se entretinha a falar sozinho?
Para Fi@:
Multiplico-me, divido-me, subtraio-me e...somo-me; as operações aritméticas de base, na base da representação.
Certa vez e numa interpretação mais avançada, escrevi-me de "raiz quadrada". No "post-vaso", despontou uma planta de expressão algébrica.
Beijos.
Para Rita:
Isso é que é preciso: que o acto de escrever seja feito com muito gozo -ou prazer, que vem a dar no mesmo.
Depois, a criatividade pessoal, o interesse e a análise pelas pessoas e coisas que nos rodeiam, e a rotina do fazer, atiram-nos para a produção de textos que dificilmente os reconheceríamos como nossos há uns tempos atrás.
Beijos.
Para Black rider:
O que "não te desculpo" é que deixes de divagar; aqui ou noutro qualquer lugar.
Divagar ou discorrer, ao contrário do que se imagina, ginastica a mente e...a lucidez. E no caso concreto origina diálogo.
Neste post, fiz uma ligeira incursão por um dos meus outros eus, que detesta a vida real , por isso se refugia em cafés inventados (mas que existem de facto) e já nem dialoga ou se insurge com ninguém.
Um dos meus outros eus (que fuma e não é tão negativista...) procura levá-lo para caminhos opostos. Veremos, lá mais para diante, se isto não vai acabar mal...
Abraço.
Para Vodka e valium:
É verdade; trocamos as voltas a nós próprios e se queres que te diga, fico danadíssimo com isso, porque sempre pretendo dar uma imagem de gajo atinado e...estas coisas notam-se para o exterior.
Estou mais descansado quando fico a saber que também "te esqueces do que escreveste antes"; também se dá comigo, mas eu julguei que era o processo degenerativo da memória que já me estava a afligir. C´a alívio!
Sei onde é o bar, mas curiosamente nunca lá entrei; obrigado pela dica. Um dia destes dou lá um salto.
Para Manhã:
Perguntas difíceis...logo pela "manhã"?!
Os "dois" personagens centrais falam ambos sózinhos. E os figurantes também; o "fulano da mesa próxima" e o "do balcão com cara de fuinha", idem, idem. Este último então, com razões de sobra: cada vez tem menos clientela. Também não admira; com clientes inventados...
Escreves mesmo bem. Há por aí autores publicados que ao pé de ti não valem um chavo.
Continua, gosto de "te ler".
Para Maria Papoila:
Maria:
Coisa que não gosto mesmo nadinha é a de fingir modéstia. Já em pequeno, ao me fazerem a sacramental pergunta "o que queres ser quando fores grande?", a resposta vinho rápida e inequívoca: «Quero ser conhecido e que me batam muitas palmas!». Por aqui já ficas com uma ideia da qualidade do bicho que se potenciava em horizontes próximo futuros...
O tempo foi passando (com desnecessária rapidez...) e tirando algumas palmadas pedagógicas, das outras nem vê-las. Penso que a necessidade do blog fica explicada.
À séria: gostei das tuas palavras simpáticas e que me impelem a escrever ainda com mais gosto e gozo e sobretudo, a poder dialogar também com as pessoas que fazem do virtual uma fonte de comunicação. Obrigado.
Cordialmente,
Legível.
Talvez o teu sonho de criança ainda se realize!!
Para Maria Papoila:
As tuas palavras deram-me novo alento!
Vou já p´rá fila de casting do anúncio do azeite com sabor a toucinho...
Este texto faz-me lembrar Fernando Pessoa, com as suas intersecções de "chuva oblíqua".
A ideia de vivermos realidades paralelas sempre nos fascinou. Vermo-nos por fora, ao mesmo tempo que sentimos as vivências.
Gostei!
:)
Para Joana:
Um comentário interessante; as coisas que podemos "ler/interpretar" dum texto de outrém, podem (e devem!) ser as mais diversas e nunca terem passado pela cabeça ao autor.
O texto está cenicamente exacto. As personagens estão bem colocadas e as falas são correctíssimas.
Agora, vir dizer que um divide-se em dois, concerteza! Ó senhor legível! E depois entrar em confusões intimistas "o meu outro eu, ah e tal!, se calhar e às tantas é mesmo, e só, um semi-eu. Francamente! Ó valha-nos Deus!
Post a Comment
<< Home