REMINISCÊNCIAS
Funcionava assim a modos como um ritual desde a morte de Francisco, o único homem que tinha conhecido, gostado e casado. Enquanto as suas vizinhas ou antigas companheiras de venda mais chegadas se aperaltavam para a missa dominical, Amélia descia do Marquês, onde morava, em direcção à baixa portuense e fazia uma longa paragem no mercado encerrado neste dia. Era assim que gostava de voltar atrás no tempo; do lado de fora da memória, sem dramas nem estridentes assoadelas nasais. Detestava choraminguices e estórias de vidas que conhecia e tinham quase sempre um ponto em comum quando recontadas: a tristeza. A puxar à dor de peito, a prolongados áis e por vezes ao desmaio prematuro.
Apoiava a mão direita à grade da entrada do mercado e olhava para o interior. De imediato, o silêncio quase sepulcral do espaço, era invadido pelas vozes pregoeiras das vendedeiras e do seu diálogo constante com a clientela -enriquecido pelo palavrão que a gente nortenha tão bem sabe usar sem melindre ou ofensa, da disposição e frescura dos produtos expostos que são um regalo para a vista e da cereja em cima do bolo que é a zona das floristas em colorido reconfortante para o visitante mais virado para o alimento artístico do espírito. Depois, os seus olhos desciam mais abaixo e via nítidamente, o talho onde conheceu Francisco. Um sorriso pacífico instalava-se-lhe no rosto; era o sinal que a visita terminara.
Na cozinha, a cebola que picou para o refogado do almoço, fez-lhe rolar duas lágrimas pela face enrugada. Já era mais que tempo de se deixar destes comeres apaladados, admitiu.
Bolhão, Porto, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.
61 Comments:
Que linda imagem Legivel! O dor vivida interiormente tem muitas vezes esse semblante. Gostei muito. E tambem do ambiente do mercado portuense. Ja merecia algo assim!
;)
bj
Pois... :(
Bem metido o truque da cebola picada.
Porque havemos de chorar o passado que nos é querido? Tornar o nosso presente triste com a lembrança de algo belo, é mesmo um contra senso, deixarmos que esse belo só nos possa trazer tristeza.
Um abraço. Augusto
ai que ele agora anda-lhe a dar pró desastre. Atão e agora onde me vou eu rir, homem?!
Bela forma que arranjaste de recordar.
olá "viciado" na escrita....versátil....odorífera...
beijos.
"deixar estes comeres apaladados..."
... para deixar de chorar, nem que sejam duas lágrimas....
...snif, snif...entrei aqui e a malvada da cebola atingiu-me logo! Isto é que eu sou sensível.
Alguém tem um lencinho?
querido legível,
sem inspiração reminiscente depois dos episódios ocorridos desde a noite passada, hoje venho em grito aflito de gratidão, beijar-te
gostas de um abraço?
alice
meu lindo lgvl
soltaram.se lagrimas e não foi da cebola
soltou.se um sorriso e não foi de uma recordação
soltou.se também um suspiro, este foi de te ler...
obrigado...
bxox
Um homem não chora. Para certas culturas, a mulher que se espera "rija" também não. Valem-nos as cebolas do refogado para disfarçar a dor contida.:))
Um abraço.
Gostei muito do teu sentir. Vou voltar.
Olá Alberto!
Excelente texto.
Um abração
- Cortaaaaaa!!!
A jovialidade do assistente de direcção notava-se na barba mal semeada e na voz cortante com que dava ordens no Plateau.
As câmeras pararam de filmar e gente de todos os tamanhos e feitios partiu em todas os sentidos. os holofotes foram apagados, os cabos espalhados pelo chão enrolados, o guarda-roupa despido e pendurado.
Todos se foram embora menos um. Um velhote, sentado numa cadeira de pano. A custo levantou-se e mirou demoradamente o cenário, transformado numa cozinha. Junto a um resto de cebola, uma faca tinha sido espetada numa tábua de corte.
O velhote abanou a cabeça e procurou algo no chão.
(Sentado em frente ao monitor do pc, o argumentista coçava a cabeça. Como dar a entender que se tratava de Manuel de Oliveira? Lembrou-se de algo)
Não encontrando o que procurava, o velhote tentou gritar, mas só lhe saiu um fio de voz: - And'aqui Bobó... desgraçado do cão...
Vim deixar-te um beijo grande e partilhar contigo esta dor da partida do nosso amigo Fernando..., afinal foi ele que um dia nos colocou frente a frente.
Beijo da Lina/MAr Revolto
"hoje não vou falar de amor
do seu olhar vigilante e possessivo
da sua boca por agora fremente de desejo
nem te digo amor quantas pernas possuo
são as que chegam para te enredar
nas malhas que teço e te aprisionam
em suposta liberdade de expressão"
querido amigo,
ia postar o teu comentário no meu blog assim que o li, porque adoro tudo o que fazes com os meus humildes posts
mas algo mais alto se levantou e tive de postar outra coisa que nunca imaginei
de qualquer forma, em breve terá o espaço que mereces no meu blog
agradeço-te o carinho e beijo-te ternamente,
alice
Gostei tanto. Muito bom. Vou colocar um link no Blog para que venha aqui mais vezes.
Ai a cebola... o que uma cebola sofre...
Ao ler os coments deixados antes de mim percebi que se passou qualquer coisa.... ou não?...
Bem, também já chorei muitas com uma dor no peito parecida, mas quando olhei para as mãos tinha era um clenex esfarelado e não uma cebolita...!
Adorei o teu coment ao poema virado canção! Respondi-te e dps passa por lá!
bjs
e estava naqueles preparos quando a campainha tocou...limpou os olhos aos braços, gesto mecanico, sentiu o perfume do desorizante Dove e lembrou-se que o algodão nunca engana...foi abrir a porta, convencida que o destino lhe enviara alguem com quem partilhar o refogado dominical...
Era o vizinho do lado. Homem discreto, de poucas falas, sorumbatico o magano, afinal esquecera-se das chaves...
contente pela visita do anjo, limpou vestigios de talho...
-Não se preocupe mais. Por hoje, eu abro-lhe a minha porta. Amanhã logo se verá...
Adorei :) e não resisti à tentação :)
beijos
Van
...olha que não, olha que não! o tempero na comida é fundamental, nos vários ciclos de vida, mas no dela é a forma de atrair a familia aos seus almoços. Ela sabe-o bem, e assim maneja a sua arte em troca de companhia
adora tê-los ali presos às suas coentradas... as ameijoas com muitos alhos, coentros e azeite virgem, é das entradas mais apreciadas... depois o cabrito que assa no forno de lenha e aquelas ervilhas salteadas que cozinha como ninguém, são a garantia de mesa cheia!
as sobremesas são de se lhes tirar o chapéu... o pão de ló de alfazeirão que aprendeu com a avó materna... e com que deliciava Francisco é o primeiro dos doces, que coloca no aparador, a acabar
de soslaio olha para a parede onde está a foto de Francisco e sem que ninguém dê por isso ergue o copo e brinda aos dias de vida felizes que passaram os dois
(há amores assim...)
Venho só para te informar que o Fernando Bizarro do Fraternidade morreu ontem.
Um abraço. Augusto
Já era mais que tempo de se deixar destes comeres apaladados, admitiu. destes, disse-o bem.
Apoiava a mão direita à grade da entrada do mercado e olhava para o interior e então sim, absorvia os verdadeiros paladares.
Gostei de te "provar" na nova casa.
:-)
Nunca mas nunca devemos reprimir as lagrimas que nos querem rolar cara abaixo.Eu vou continuar a comer comida apaladada.Gosto muito de ti mm sem te conhecer das me força.bjos
... li e reli umas quatro vezes à procura do "truque"... a menos que sejam as duas singelas lágrimas, porque picar uma cebola provoca mesmo é uma enxurrada delas... não, não tem truque, decidi... hoje é um retrato real... até eu lá estou!...
querido legível,
sabes como me agradam as tuas visitas e comentários
não me cansarei de repeti-lo
não entendi o último...
a que diálogo te referes?
por favor, diz-me
obrigada desde já
beijinhos
muitos
alice
Gostei do texto (e do truque da cebola, nada de sentimentalismos genuínos... ;) ) e gosto ainda mais da foto... Cheia de planos...
Beijinho :)
Só hoje te descobri. Que bela escrita. Vou ter de voltar para ler muito do que perdi para trás.
Tenho um modesto Sítio ao teu dispor.
Abraço.
Licínia
Para sofia:
Achas que sim?! E eu que temia uma reacção contrária; que chovessem nêsperas, couves galegas e tomates em forma de protesto, por ter desvendado alguns segredos pessoais daquele que é uma "instituição portuense": O Mercado do Bolhão...
Ainda bem que me dizes isso... que tens voto na matéria.
bjs.
Para sotavento:
... claro.
:);)?)5)&)ç)eheheheh)
Para augustom:
Também pensei em meter o truque da batata, mas achei um exagero literário; era quase uma sopa de letras... .
Chorar o passado é um erro; há mesmo quem se passe com tal lamento...
Abraço.
Para seila:
Raios! que tu és difícil de satisfazer! O próximo vai ser de gargalhada (como se eu soubesse o que vou escrever amanhã... ) para te rires à vontade.
Para anarquista duval:
Foi o que se arranjou na altura. É tudo uma questão de improviso...
Para mendes ferreira:
Estou a preparar-me para fazer mais uma cura...
... mas é sol de pouca dura; é mais forte do que eu... o vício chama-me de volta.
beijos.
*
Para sea:
Os portugueses têm hábitos alimentares que são (para a sua saúde), dos mais nefastos da comunidade europeia...
... duas lágrimas, são duas gotas no oceano de uma tragédia.
(esta é uma representação do meu lado mais sério na blogsfera; uma excepção à regra)
Para mc:
Não te fazia assim; tão sensível... até às lágrimas.
Toma lá. Não precisas de o devolver já; fica com ele para os posts mais dramáticos...
Para alice:
Guarda a inspiração para os teus textos e poemas, para eu os comentar a preceito; aqui basta escreveres umas coisas simples e se possível sorridentes.
Gosto pois!
Toma lá um também!
Para phi@:
O que eu fui arranjar! Ó mulher, limpa-me essas lágrimas que não me deixam olhar-te os olhos. Bonitos.
beijos.
Para canela e jasmim:
Mas ao que consta, chorar até faz bem...
Também gostei de te ver por aqui, um espaço não muito dado ao dramático; antes, pretendendo oferecer um sorriso descomprometido a por quem cá passa.
Abraço.
Para jpd:
Caro José:
Obrigado, obrigado!
Abraço.
Para rui:
... era mesmo um desgraçado, admitia-o ganindo. Cão com menos sorte no cinema, não devia haver.
Começou por cometer um enorme erro ainda em início de carreira: apaixonar-se pela cadela Lassie. Claro que levou uma tampa das antigas; quando esteve na Meca do celulóide procurou-a para lhe ladrar do amor que lhe tinha. Nada feito; ela disse-lhe que já estava comprometida com o Frankão Sinatra.
Tantos anos depois encontra-se a trabalhar com Manoel Oliveira num papel secundário do filme "Afinal o Milionário Estava Cheio de Cães".
Mau prenúncio: ia bater a bota antes do mestre...
Para pilantra:
Poramordasanta mais o descanso dos alhos!
Para aromas do mar:
Lina:
Lamento a notícia do falecimento do Fernando.
Beijo grande.
Para alice:
É bom saber que mereço um espaço no teu blog... mas não te apresses.
Trata, com tempo e calma, de postares as "coisas que nunca imaginaste", porque essas "mais alto se levantam... "
beijos muitos.
Para fortunta godinho:
Óptimo! Palavras simpáticas que calam bem fundo... Benvinda!... Quer dizer... Fortunata!
Para joana:
Não Joana. Não se passou nada... comigo. Os textos que edito no meu blog, não têm qualquer correspondência com a realidade-real; são meras fantasias fabricadas por um cérebro que não descansa e envolvidas em papel do tal...
´inda bem que gostaste.
Passo pois!
bjs.
Para vanda baltazar:
... entrou. Passaram tantas manhãs-que-logo-se-veriam que ele imaginou que ela tinha dito aquilo por dizer, melhor, para não estar calada.
Até que um dia, passados uns anos largos (pelas suas contas de cabeça), se decidiu a perguntar-lhe quando chegaria a tal manhã-que-logo-se-veria.
- Não sejas apressado, homem! e não me pressiones, que eu é que decido, quando te devo retirar do baú...
beijos.
Para jorgesteves:
Aposto que não são daqueles pássaros que se vendiam junto à estação de S. Bento; que esses já são estória passada...
Em Lisboa também existem desses melros; e igualmente lhes tenho uma vontade...
Abraço.
Para segurademim:
"... há amores assim... " e também havia de haver um pouco mais de contenção nas imagens culinárias que aqui deixaste... e que me deixaram a cabeça à roda a esta hora da noite.
Lá tenho de ir preparar uma sandes mista para sossegar o espírito...
Para augustom:
Obrigado pela tua informação. A Lina do "Aromas do Mar", já me deu a notícia.
Abraço.
Para yulunga:
Ainda bem que a prova te satisfez o paladar... exigente.
Para as velas ardem até ao fim:
De acordo. A repressão nunca!
Agradeço a tua confiança.
bjs.
Para lélé:
Hoje não havia mesmo nenhum truque... e não é que não me tivesse esforçado. Mas nem sempre as coisas saem como desejamos...
Para alice:
Ao diálogo a que já me tenho referido por diversas vezes, que são os comentários que vamos deixando nos blogs uns dos outros, feitos de palavras umas vezes formais, outras sorridentes, e ainda aquelas que não são assim-assim-nem-assado. Em suma, o diálogo possível virtual.
Beijos beijos.
Para luz:
E eu gosto de te saber bem lá pelas estranjas com os súbditos (e as súbditas)a pedalarem para os empregos em ´cicletas que não são de montanha (sorte a deles!)a beberem aquele chá enfadonho acompanhado por uns horrorosos cakes sem açúcar... bah!...
... há gostos para tudo, tá visto.
beijinhos.
Para askim:
... que esta interacção azul contribua para que nos sintamos de bem com a vida... apesar de por vezes, ela nos ser madrasta.
Mas a vida é assim mesmo, não é?! Nem sempre com os tons de azul que nós idealizamos... mas que fazemos força para que não nos desaparecem da vista assim sem mais nem menos...
Abraço grande.
é... quando o passado se nos aparece... não obstante o cenário que temos no presente...
Para licinia quitério:
Palavras simpáticas as tuas.
Não deixarei de visitar o teu espaço.
Abraço.
Para poca:
... quando isso acontece, voltamos atrás no tempo; há quem o faça como se ainda a ele (ao passado) estivesse agarrado. Outros, visitam-no com saudável distanciamento; digo eu, que sou adepto destes últimos.
e chegou tarde pela 1ª vez :( zangada, amuada a cebola contestou ...
a culpa é da faca, o gume ...
e ali ficou despedaçada, mais uma vez, o beijo o beijo que tardava em supreender .
Para inbluesy:
É uma abordagem ao assunto de que me não tinha lembrado; a do gume da faca. espero que a mulher não cometa qualquer disparate de que se possa arrepender...
Fico feliz por teres gostado :)
pasteis de nata?
Para inbluesy:
SEMPRE!... a qualquer hora.
Post a Comment
<< Home