
As pontas dos dedos dela percorrem com desvelo as teclas de um piano que provavelmente conheceu tempos mais favoráveis que estes que hoje passam, num andantino grazioso que apenas se faz ouvir em condições razoáveis a quem permaneça não mais longe que uns vinte metros da pianista. Schumann não se consegue sobrepor às vozes da multidão acantonada na praça nem essa será a intenção; a cada um a sua música, é a sua divisa, pois sabe por experiência própria, por amor à arte e à arte da sobrevivência que as notas musicais que toca nunca se confundirão com as da musicalidade turística que se vocalizam em registos tão diversos que dificilmente se descobrirão os seus intérpretes.
Enquanto a chuva que se adivinha não afastar os últimos turistas da esplanada, ela continuará a tocar (com desvelo) os compositores que ama e que lhe alimentaram o sonho de uma carreira que não se concretizou à medida dos seus desejos. Não os condena nem se sente traida. Por isso, todos os dias faz a viagem Veneza-Mestre num combóio onde já não há lugar para qualquer sopro de esperança; apenas para o anonimato diário. E volta. Ao lugar da música.
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Hoje, por mais que tentasse, não consegui pintar o toque final irónico que tanto prezo nas escrevinhaduras que por aqui vou deixando; aponto o dedo (e a culpa... que não sou pianista) a Schumann, que escutava enquanto escrevia este texto, num Concerto para Piano em Lá menor, Op 54. Na próxima ouvirei Mozart e, quem sabe, escreva de Florença...
Veneza, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.