DOMINAÇÃO DE SENTIMENTOS (9)

Deixou as crianças no infantário e fez a pé a distância que a separava da paragem do autocarro para o hospital de Santa Maria onde ia visitar Umbelina, uma amiga de longa data, vítima de atropelamento e fuga na avenida 5 de Outubro. Do atropelamento resultaram múltiplas fracturas na amiga e, ao que se sabe, da fuga o fugitivo saiu disparado e ileso. Mas os seus pensamentos, por esta altura, não estavam centrados na azarada Umbelina. Por mais voltas que desse à cabeça, Eunice não compreendia porque razão Jesualdo lhe enviara um e-mail convidando-a para um jantar, onde o assunto se resumia a um misterioso "ou comem todos ou... ". Sendo certo que, quando o marido chegava tarde da noite a casa, já Eunice dormia profundamente, e enquanto ele ainda dormia a sono solto pela manhã, ia ela a caminho do infantário com as crianças, isso seria motivo suficiente para ele não optar por um telefonema, num momento em que ambos estivessem acordados? E o que quereria dizer "ou comem todos ou ... "? Seria uma ameaça velada de significado oculto ou um modo claro de fazer perder o apetite ao mais faminto dos comensais ? E afinal era um jantar a dois ou Jesualdo convidara também os amigos com quem se fazia acompanhar, aos fins-de-semana da época venatória, divertindo-se a darem cabo da vida aos tordos? Os sentimentos contraditórios eram de tal ordem (continuava a ter imensas desconfianças sobre a fidelidade de Jesualdo, mas certezas, apenas aquelas que a intuição lhe permitia), que o mais assisado seria aceitar o convite e tentar perceber onde começava o menu e paravam as modas. Acomodada no interior do transporte colectivo, enviou uma mensagem ao autor desta história «Se eu não aceitasse o convite, queria ver como é que descalçavas esta bota.»
Continua. Sem esgotamentos académicos ou sofrimentos pandémicos.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.