CLARA BÓIA

Pergunto a Clara, se quando desce na vida, esses reveses podem ser explicados com a claridade que exigimos a nós próprios, das vezes que nos propomos fazer a contabilidade da nossa existência. Ela responde sem hesitação, que não. Porque crê que existe uma qualquer força desconhecida que faz com que os azares e contrariedades que lhe batem à porta se multipliquem sem intervalos. E isso, acrescenta, não tem explicação lógica, adiantando entretanto que de supersticiosa não tem nada. «Agora, por exemplo, estou no "ciclo da escada rolante". Esteja com atenção e veja o que vai acontecer de seguida. Vou ser engolida por uma medonha negritude. Fui ou não fui?! E no fim da escadaria apenas não torci um pé porque não calhou. Certo? E o combóio que pretendia apanhar, enh?! já se foi e só daqui a três longos minutos chega outro com tanta gente, que provavelmente não consigo lugar sentada. O que me diz a isto? E porque vou chegar atrasada ao serviço, espera-me um sermão dos antigos do meu chefe. Mas hoje não estou para o ouvir e vou voltar para casa. O meu marido - que está com baixa médica há uns tempos largos, quando me vir chegar exclama "Desta vez é que foste despedida! Mas já que cá estás, prepara-me o pequeno-almoço que não me importo de o comer na cama." Entre o sermão do meu chefe e o pequeno-almoço do meu marido, opto pela escada rolante, percebe? Mas tudo isto começou tinha eu os meus três anos. A banhos, numa das praias da Costa da Caparica, o meu pai deixou de me segurar por uns momentos e, voltando-se para a minha mãe, gritou "A Clara bóia!!", enquanto eu, totalmente submersa, era invadida por uma escuridão assustadora (nunca consegui abrir os olhos sob a água) provava o sabor do sal Atlantico pela primeira vez e os pés de um nadador de domingo só não me acertaram por puro acaso.»
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.