Sunday, June 01, 2008

ELES ESTÃO ENTRE NÓS





"Não sei se reparaste mas o olhar depreciativo que a loura me deitou era de humana para manequim." disse, sem mostrar os dentes nem mover um único músculo do rosto, Elisário Carvalho. "Ora! e o que somos nós senão isso mesmo? O gerente apenas nos pôs cá fora para atrair a clientela. Não foi pelos nossos bonitos olhos nem porque precisássemos de apanhar ar. E se queres saber a minha opinião, prefiro o interior da loja. Ainda há pedaço, aquele tipo de blusão laranja que está parado ali ao pé do banco, assim como quem não quer a coisa, passou-me a mão pelo peito, o grande tarado!" proferiu indignada Clarissa Castanheiro. "Quando nos moldaram na fábrica ficámos com o destino traçado: rolha na boca e é se queremos estar vestidos decentemente!" volveu Elisário, pressentindo que um cão alçava a pata na direcção das suas calças de cabedal preto. "Vestidos... e despidos. Ou já esqueceste que no sábado, antes de nos prepararem para a nova colecção nos deixaram nus durante largas horas e nem tiveram a preocupação de cobrir os vidros da montra?! Bonitas coisas devem imaginar de nós os transeuntes... " não se calou Clarissa, que, a existir um sindicato da classe, seria eleita seguramente, a representante dos manequins naquela loja. Coisa de que Elisário não se queixava era da ausência da memória. "Não me havia de lembrar! e devo dizer-te que o teu corpo não fica nada a dever em beleza, à maioria dessas humanas que me passam pela vista!" Se lhe fosse permitido, ela teria respondido com um olhar provocante, sinal exterior que lhe tinha agradado o piropo e, tal como tinha lido num conto -já não se recordava bem onde nem quando, usaria a mesma estratégia da heroína: aguardar que Elisário regressasse da rua, onde fôra para comprar preservativos, prometendo não demorar...

Hamburgo, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

39 Comments:

Blogger un dress said...

all dead: human: all dead!!
- ouvi isto num filme ou

inventei agora mesmo!?,
pergunta ele a si mesmo,

apreensivo com a súbita
consciência de que
manequim ao relento é manequim no

meio.caminho.a.caminho
do vidrão dos plásticos e afins.

não fui feito para relentar,
- murmura agora muito baixinho.

e sim, apesar da rigidez facial de origem -

- visualiza que, no vidro em frente, uma profunda ruga de apreensão e perplexidade

se lhe desenha entre os olhos azuis de um azul azul...
- "azul que não há

azul que é pura memória de algum lugar"




abraÇo ~ beijO ~ aZu l [ is

1/6/08 14:16  
Blogger Sandra Fonseca said...

Incrível! Um dos mais saborosos textos que lí por essas paragens. É uma crítica deliciosa ao que somos, humanos, manequins...? vitrines vivas, afinal!
Beijo.
Obrigada por seus comentários-intervenções nos meus poemas.

1/6/08 15:21  
Blogger tb said...

deslocamo-nos visualizando os espectros...de nós. :)
Como sempre, excelente de ler e apreender.
beijo

1/6/08 15:27  
Blogger Licínia Quitério said...

Fazes favor de prestar mais atenção ao que escreves. Trocaste as falas dos personagens.Pois, assim também serve, mas dá para notar o "lapsus teclae".

Beijinhos, sorrisos e... já me ia esquecendo de dizer - TEXTO BRILHANTE!!!

1/6/08 17:05  
Blogger Justine said...

Texto "magritiano", se me é permitida a analogia! Brilhante texto de insinuações e sugestões.

1/6/08 17:59  
Anonymous Anonymous said...

não imaginava as coisas a que dois honestos manequim se expôem, quando passam para o lado errado da montra. desconfio que o senhor que passou a mão pelo peito de Clarissa deve ser o mesmo de há uns bons posts atrás, o tal que vive - ou vivia - maritalmente com uma boneca insuflável...

quando comentei este texto com a minha Humana, ela contou-me que uma vez, passando por uma montra de uma loja de roupa "pré-mamã", viu um manequim com ar aflito e envergonhado: tinha-lhe escorregado o vestido, de tecido fino, e exibia, assim, uma barriga falsa, feita com sacos de plástico, "presos" ao seu corpo por fita gomada. a Humana imaginou que esse manequim era muito perverso e ter-se-ia instalado, há algum tempo, naquela montra, a planear o rapto de algum recém-nascido - aliás, aquela loja era o sítio ideal para saber pormenores da vida das grávidas que lá iam, sem levantar suspeitas. no dia certo, havia de sair da montra, dirigir-se à maternidade e sair de lá com um ar feliz e um lindo bebé nos braços,depois de deitar a falsa barriga num contentor de lixo. o maldito tecido escorregadio do estuporado vestido largueirão é que lhe tinha estragado os planos. e o pior é que a loja estava fechada...
por incrível que pareça,no dia seguinte, os jornais da tarde noticiaram o assassinato da funcionária que abriu o estabelecimento, bem como o misterioso desaparecimento de um dos manequins.
então, Humana, não foste contar as tuas suspeitas à polícia? - perguntei.
claro que sim, felina! - respondeu ela. mas sabes qual foi a reacção deles? ia eu a sair, quando os ouvi a dar grandes gargalhadas e a dizer: mais uma doida que nos saiu na rifa!!!!

marradinhas amistosas

1/6/08 18:13  
Blogger Eme said...

A mesma reacção ao post anterior: lê-se seriamente e acaba-se a rir. Falo por mim, e gosto. e grava-se na mente que as tuas personagens acabam sempre a sair para comprar qualquer coisa ficando o resto por conta da imaginação.

vida de boneco.. quase conseguiste que tivesse compaixão deles e que lhes desse alma.

por outras palavras gostei muitíssimo.

Beijo para ti

1/6/08 22:34  
Blogger JPD said...

A sedução está no que se adivinha.

O que vou sabendo é que é muito mais atractiva a montra que expõe manequis nus do qua as que os vestem.

Haverá alguém, Alberto, que resista a não espreitar através da nuvenzinha que está "cirurgicamente" estacionada em frente das «vergonhas» de um manequim nu e que resiste às tentativas de alteração de perspectiva dos mirones?

Um abraço para o excelente e malandro texto.

1/6/08 23:34  
Blogger lélé said...

A imaginação do ser humano, seu calvário e sua glória!... Quando imagina outros seres a imaginar, sempre os imagina a imaginarem-se humanos...
... E, no entanto, a imaginação é inimaginável!...

1/6/08 23:43  
Blogger A Lusitânia said...

os manequins são como algumas árvores milenares .... se contassem tudo o que lhes é permitido ouvir e ver ......... tantas histórias haveria para narrar.
Uma boa semna de fantasia no papel.

2/6/08 09:06  
Blogger Rui said...

Vitinho aproveitou-se da distracção da avó que, no multibanco dos Dresdner Bank, tentava levantar a reforma, e foi dar uma volta pelas redondezas. Apreciou quem passava e os saldos da loja contígua ao banco. Estava quase a aborrecer-se, quando reparou nas quatro figuras hirtas que faziam guarda à loja. Inspeccionou-os de alto a baixo, à frente e atrás. Olhou em redor e, como ninguém lhe parecia prestar atenção, sorriu um sorriso malandro. Pegou nas calças da manequim pela cintura e começou a desapertar o botão: ia baixar-lhe a calças e fazer-lhe uns desenhos com o marcador que trazia. Ia porque levou um calduço com tanta força que caiu de joelhos. A esfregar o pescoço e a chorar baba e ranho, foi ter com a avó.

- Ó avó, aquele boneco bateu-me!

Clarissa sorriu, quando Elisário lhe piscou o olho.

2/6/08 12:01  
Blogger pin gente said...

é dura!
muito dura... a vida de manequim

2/6/08 18:48  
Blogger Arnaldo Reis Trindade said...

Parabens pelo texto, acabas de fazer não só um bela comparação - metáfora do que so mos mas também do que seriamos se não pudessemos agir em relação aos outros, pena que tantos humanos tenham que viver como manequins.

Abraço

2/6/08 19:00  
Blogger dona tela said...

Haja alegria por aqui também.

2/6/08 19:13  
Blogger Heduardo Kiesse said...

Espelho nosso! Texto réplica de nós e de alguns tiques humanos. Foste fundo!! Ah é verdade! Pode ser tinto :-) eheh tu sabes!
Abraço

paradoxos

2/6/08 19:19  
Blogger Maria Oliveira said...

Excelentes textos por aqui!
E sentido de humor também!

Parabéns pelo blog.
Abraço

2/6/08 20:22  
Blogger No-Me said...

Para uma humanidade morta há sempre uma resposta bem viva.

Excelente. Foi bom conhecê-los desta forma.

;)
Abraço

2/6/08 20:33  
Blogger Leonor said...

já me aconteceu confundir manequins com pessoas, de tão bem feitos e vestidos estão.
Será que eles nos confundem a nós ???

2/6/08 21:34  
Blogger lenor said...

Aqui está a prova que os manequins são como as barracas: também abanam.

2/6/08 23:02  
Blogger Li said...

Mais um texto que é um estrondo...será esta a nossa postura na vida?...parados à espera que nos vistam, que nos dispam, que nos coloquem lá dentro ou lá fora...enfim...muitos de nós estamos hoje assim...estagnados...

Bjs e boa semana...:D

2/6/08 23:08  
Blogger Olinda said...

Eles andam aí:-) E voltaram?:-)

3/6/08 10:30  
Blogger musqueteira said...

...gosto da palavra transeuntes porque a ela se referem sempre, todas as cores e volumetria que envolvem o nosso espaço no tempo!
uma boa semana!

3/6/08 10:48  
Blogger Joana said...

Se Elisário demorar tanto tempo quanto o beijo dos meus apaixonados temos sarilho!
:)

Muito Nip 'n Tuck!

Bjs

3/6/08 13:13  
Blogger Justine said...

Espero que já tenhas saciado a fome matinal:))
Quanto ao "filme", obrigada pela confiança na guionista!

3/6/08 15:23  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

querido ______Legivel





.a






fantasia e tão_____belA





tão__________reAl




mas tão.real






que__________?"quase"
se.chega.a.acreditar.nela______...








excelente texto









beijO____C______carinhO

3/6/08 15:34  
Blogger segurademim said...

... trepei ao jacarandá

bonita árvore de sombra e ornamental, com todas aquelas flores roxas em maio

o dia estava instável, alguns aguaceiros e muitos chapéus-de-chuva abertos tapavam-me as "vistas" ... deste ângulo, fixei os "trapinhos dos bonecos" lá de baixo que conversavam imperturbáveis ...

o telefone tocou, era o carvalho: "podias trazer-me aqui acima o casaco de cabedal e as galochas, se fazes favor?"

3/6/08 18:34  
Blogger Ruela said...

sentimentais!

3/6/08 18:50  
Blogger A Lusitânia said...

´Fanatasia, sem a graça das tuas histórias, mas deixei uma real no meu luar e lembrei-me, nem sei porquê, de ti.

4/6/08 11:33  
Blogger Huckleberry Friend said...

Quem está de que lado da montra? Nós ou eles?

4/6/08 14:14  
Blogger MARIA MERCEDES said...

Sempre estiveram...só que agora, são muito mais bonitos e elegantes!

beijinho

4/6/08 22:51  
Anonymous Anonymous said...

amigo legível, já resondi ao teu comentário e deixei algumas sugestões no blog da Guionista justine.

marradinhas afectuosas

5/6/08 13:14  
Blogger ~pi said...

a

sobrevoaç ~ ã ~ o

dos

manequins :)




~

5/6/08 14:11  
Blogger Luz said...

Quem imaginaria que olhares tão frios fossem capazes de conversas tão expressivas?!... São uns marotos os manequins de madeira... :)

Bjinhos

5/6/08 18:44  
Blogger pentelho real said...

por este andar serão humanos num futuro (mas iguais a nós sem tirar nem pôr) e vão engordar e perder esta elegância.

6/6/08 00:19  
Blogger Frioleiras said...

não resisto nunca

à tua música.............
tornou-se um vício...

e

depois
leio-te

e gosto ... sempre...........

6/6/08 00:45  
Blogger Frioleiras said...

quando dei por isso ... verifiquei que estava a escrever um "comm" julgando fazê-lo no blog da dress......

mas, ao fim e ao cabo poder-se-á aplicar ao teu... só que a música, bela na mesma, é outra..........

6/6/08 00:51  
Blogger scaramouche said...

muito bem.
gostei da critica

abraço,
scaramouche.

6/6/08 18:41  
Blogger Vanda said...

:-D


É preciso ter "mãonoquim" :)

ai desculpe! "manequim" :-D

7/6/08 15:18  
Blogger Auréola Branca said...

(risos)
Nunca havia visto tal comentário de manequins! Aliás, nunca havia, se quer, imaginado, o que eles poderiam estar pensando.
Muito bom!
Prometo que construirei diálogos na frente de algum deles, na próxima vez que os vir. E rirei sozinha.

Abraços e risadas.

9/6/08 16:55  

Post a Comment

<< Home