Thursday, May 08, 2008

DAS VERTIGENS







Arrependeu-se assim que o balão se afastou do solo meia dúzia de metros e, logo depois, as casas parecerem construções de legos e as pessoas formigas. Quando uma águia enorme lhe passou em voo rasante rente ao nariz, tremeram-lhe as pernas e deu graças pelo bicharoco não ter sonhado que esteve a centímetros de um lagarto convicto, testando os níveis de coragem de voar sem asas. No interior de uma grande nuvem branca, imaginou-se pálido e defunto, preparando-se para o interrogatório de prestação de contas ao Divino, ele que carregava na consciência, um considerável peso de dívidas e de outros pecados de difícil avaliação. Um companheiro de viagem perguntou-lhe se estava tudo bem com ele. Saindo enquanto o diabo esfrega um olho, da prova celeste, respondeu que "Sim, estou muito bem. Em terra firme." Não fez caso de quem o preveniu que devia ter vindo bem agasalhado, que nas alturas a temperatura não era pera doce e agora batia os dentes de frio, agarrado com unhas e dentes ao rebordo do cesto de vime da máquina voadora de ar quente. Quando o piloto fez sinal que iam descer e o balão estremeceu, nem quis olhar para baixo: sofria de vertigens com vertiginosa frequência. Abriu os olhos devagar, depois do embate um tudo nada violento com o chão. Estava sentado num banco de jardim e segurava nas mãos um livro de banda desenhada. Como quem não quer a coisa, aproximei-me e li por cima do seu ombro, o título da capa "Arsénio: de vertigem em vertigem". E apreciei o desenho de uma figura masculina -que dava ares do homem sentado no banco do jardim , agarrada com unhas e dentes ao rebordo do cesto de vime do balão de ar quente e, um outro balão (este sem cesto de vime) onde se encontravam dentro as palavras de Arsénio "Sim, estou muito bem. Em terra firme."
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

32 Comments:

Blogger São said...

Bem me parece que nunca faria uma viagem de balão...
Tudo de bom.

8/5/08 15:26  
Blogger Rui said...

Clark Kent tirou o mindinho do ouvido e, despreocupadamente, limpou-o às calças de lycra. Estava concentrado no que lhe chegava, através da visão raio-x, do prédio da frente: a espampanante vizinha do sexto esquerdo recebia a visita do canalizador. Bocejou. O rapaz, deitado no chão da cozinha, com a cabeça enfiada por baixo do lavatório, só canalizava e não ligava nada aos maneios de ancas da loira platinada. "Oh mulher, diz-lhe que é a tua canalização que precisa de reparos e avança lá com isso".

- Disseste alguma coisa, Clark? - Lois Lane estava à porta da sala. Tinha a cabeça cheia de rolos e a cara besuntada com uma lama verde, de aspecto duvidoso.
- Argh... assustaste-me, querida. Eu estava a... estava a perguntar-te a que horas chegava o Arsénico.
- Não lhe chames isso, que ele não gosta.
- Pronto, está bem, o Arsénio.
- Deve estar aí por volta das sete.
- Esta coisa de convidar os fãs cá para casa, numa tentativa de humanizar os super-heróis, bem que me pareceu uma ideia triste. Odeio os gajos do marketing, só pensam... - com a sua poderosa audição, percebeu que o canalizador tinha terminado o serviço debaixo do lavatório. - Oh querida, não tens roupa para por a lavar?
- Que raio de pergunta é essa?
- É que... é brincadeira minha... sabes como eu gosto de uma boa... palhaçada de vez em quando - não resistindo aos sons ofegantes que a vizinha começava a produzir, ia virando a cabeça amiude na direcção do prédio da frente. - É por isso que eu gosto... do... Joker...
- Tu estás a observar a vizinha da frente, Clark? Olha que levas uma lambada.
Clark Kent fez uma expressão de ofendido mas não teve remédio: foi levado pela orelha, de castigo, para o quarto de chumbo.

8/5/08 16:17  
Blogger Li said...

Aonde nos leva a imaginação?...este era um bom título para um livro...amigo esse que nos leva a viajar pelo mundo, mesmo quando estamos sentados no banco de jardim lá do bairro...

Mais uma vez, um texto lindo...

Parabéns...:D

8/5/08 17:20  
Blogger Joana said...

Nunca andei de balão e espero um dia ver a terra lá do alto!
Apesar de ter vertigens, acho que lá de cima deve dar para perceber como somos tão pequeninos... e que devemos relativizar os nossos pequenos dramas humanos.
Gostei muito da tua história!

8/5/08 17:49  
Blogger Vanda said...

É um dos meus hobbies preferidos, Alberto, como descobriste? :)


Pratico-o todas as semanas, religiosamente à 2ª feira, talvez como fuga à pressão de mais uma semana de trabalho que se inicia.

É maravilhoso!

O ar puro, as formigas, as ervas daninhas e as nuvens frondosas!


Normalmente, escolho o terceiro banco em sentido ascendente da Av. Liberdade :)

O que já sei, com a época turistica à porta vai ser complicado e com muita filas :)

8/5/08 21:09  
Blogger Vanda said...

Beijos sorrisos e fumo no ar :)

8/5/08 21:13  
Blogger dona tela said...

Ai, credo! O Senhor Oliveira tem cada uma. Agora não pode ver um balãozinho que começa logo a inventar histórias. Sabe o que me apetece dizer ao Arsénio quando está sentado no banco de jardim? Ó patego, olha... Bem, esta foi mesmo foleira. Ainda tenho que treinar muito para conseguir fazer comentários com muito nível, ali como os do Senhor Rui, não desfazendo nos dos outros senhores (e senhoras).
Até amanhã, Senhor Oliveira.

8/5/08 21:36  
Blogger ~pi said...

também eu convoco o pulso à pedra
e me ocorro atrás da nuvem - qual ?


também eu me arrasto
corpo:





pássaro mais que perfeito

todos os nomes no poço



[ tão







vertigem






verti


cal



~



(adaptação :))

9/5/08 11:45  
Blogger lélé said...

Lagarto convicto!... Arranjas cada ficção!...
Por outro lado, a imagem dentro de uma nuvem está muito realista! É mesmo assim que uma pessoa se sente e bem se vê que quem inventou a expressão "andar nas nuvens" nunca o deve ter feito!...

9/5/08 13:21  
Blogger Justine said...

Encantador, o teu texto dentro do texto, dentro do texto... um jogo de espelhos é sempre estimulante, e este teu até me deu vertigens :))
Para além do sorriso, agradecida pela bela prosa.
Bom fim de semana

9/5/08 16:29  
Blogger JPD said...

Olá Alberto

É isso mesmo: o sonho, fazendo-nos voar, não nos livras do medo.
Porque a partida e a chegada nos prende à terra, E essa contingência revigora ou reduz medo, mas não nos liberta completamente dele.

Bem congeminado, texto.

Um bom fim de semana

9/5/08 21:30  
Blogger Maria Anjos Varanda said...

Parabéns Alberto.
Lindo texto....e que grande imaginação meu caro.

Quem não ia nesta viagem era eu...ah pois não...é que também sofro de vertigens...

Tudo de bom
Beijos

9/5/08 21:43  
Blogger Pilantra said...

- Mas que real figura!, disse a pilantra que passeava, à banda, no palavroso balão da banda.

E berrou em banda larga:
-Compadre, que sorte não teres deixado as unhas no banco do jardim!

9/5/08 23:03  
Blogger MARIA MERCEDES said...

Belo texto circular, redondo como o balão de ar quente. Lê-se como uma ascenção, para depois ficar a pairar a 5.000 pés, sem vertigens, sem vertigens...

beijinhos excitantes

9/5/08 23:31  
Blogger esse said...

Prometera a si mesmo que se eles descessem, iria de balão até Fátima...mas nunca pensou que o caminho fosse sempre a subir...

10/5/08 00:50  
Blogger Heduardo Kiesse said...

Ilimitado poder sugestivo, criatividade sem barreiras... Sim!!

Edu

10/5/08 01:10  
Blogger inominável said...

eu vejo este balão todos os dias! quando voltas para ficarmos a olhar pó balão?

10/5/08 08:27  
Blogger segurademim said...

Ó vertigem anda cá!! busca, busca...
alegre e saltitante ali estava o animal a correr de um lado para o outro atrás da bola que o dono atirava e ele repetidamente caçava e devolvia

o tempo ameno, a paisagem ampla, o verde calmante iam a pouco e pouco produzindo os seus efeitos...

espreguiçou-se e uma moleza anestesiante foi tomando conta dos seus sentidos... deitou-se no banco, fechou o livro. assim naquela posição, encarou de frente o céu

sempre resistira a ter cães em casa

10/5/08 09:41  
Blogger Olinda said...

vertigem: vontade. :-)

10/5/08 11:54  
Blogger lenor said...

Betaserc, três vezes ao dia. E não andar muito afastado das paredes.

10/5/08 12:43  
Blogger Ruela said...

ler este texto a ouvir Mão Morta

vertigem me deu ;)

10/5/08 21:16  
Blogger Leonor said...

Será sem dúvida uma boa ocasião para ver as coisas com uma outras perspectivas, mas também eu sofro de vertigens, pelo que nem com betasercs me atreveria a ver o mundo num só dia (através de um balão, nas nunvens)

10/5/08 23:01  
Blogger RC said...

Pés firmes no chão.

Xi.

11/5/08 00:04  
Blogger un dress said...

v

e

r

t

i

g

i

n

o

s ~

a

m

e

n

t

e



me elevo

baloa

balan ~ ç o

espelho

zigue ~ zago

terra cega

de todas as cores

de cabeça pra



b

a

i

x ~

o







abraÇo.beijO vertiginados ~ :))

11/5/08 14:22  
Anonymous Anonymous said...

matrioshka feita de imagens e ideias. gavetas dentro de gavetas. até onde leva a vertigem da imaginação?

mimos, ronrons

11/5/08 16:49  
Blogger Lyra said...

Bem, leio-te, re-leio-te e até eu que tenho vertigens, embarcava numa destas viagens, desde que fosses lá dentro também e a contar-me uma qualquer história assim, bem humorada...

Beijinhos grandes e até breve.

;O)

11/5/08 18:45  
Blogger Gi said...

oh caramba perdi-me nas folhas desse livro . Acho que também fui às nuvens , sem balão claro. uso saias travadas :)

beijinho

tens no meu canto o prémio Honor 2008 e um meme para dares sequência se te apetecer :)

Um beijinho

12/5/08 00:49  
Blogger A Lusitânia said...

Lembrei-me do «Sete-Sóis», amante de Blimunda e, com eles, da capacidade de sonhar.
Um abraço de MulheresaoLuar.
Apenas fiquei curiosa de ver este espaço, sinalizado a partir de Bettips.

12/5/08 11:24  
Blogger Sandra Fonseca said...

Para um fóbico o único meio de curar-se é enfrentar a fobia.
Na falta de um balão, Delfina sonha voar em suas próprias asas...
Ouviu falar do padre brasileiro que neste mês se prendeu em milhares de balões e... desapareceu no ar, sobre o mar?
Se quiser te envio a história completa.
Beijo no Alabastro, o cavalo fogo.

12/5/08 16:35  
Blogger manhã said...

á história e a realidade, faz lembrar Borges, parabéns!

12/5/08 22:50  
Blogger pin gente said...

ora arsénio é mais um interessante nome a juntar à minha lista.
eu gostava de subir num balão. uma vez lá, não digo que não mudasse de ideias. o frio! se não me tens lembrado isso ia, na boa.

abraço

13/5/08 12:17  
Blogger bettips said...

Eu? Palavras...incertas, como se o balão me tivesse dentro e a vertigam é olhar a terra com olho de ave...
Preferia(-me) rir e disfarçar, como essa tua verve que esconde realidades ...como a náusea de mais um sinal vermelho numa rua onde te lembro.
És, para mim...como uma banda que se desenha!

13/5/08 16:09  

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