CARICATURAR
O bico do lápis de grafite voava célere sobre o papel branco, em traços que ganhavam vida própria como se do rosto de cada um dos retratados, em carne e osso se tratasse. Aos olhos, só lhes faltavam piscar de emoção e aos lábios, abrirem-se em sorrisos extasiados porque não é todos os dias que somos alvo da atenção pública e tais momentos são para fruir em pleno. Já me tinha apalavrado com o artista e por isso, na fila, seguia com a atenção possível as manobras do mestre desenhador, vocacionado para -se fosse caso disso, num golpe de mágica, aperfeiçoar um nariz desnecessariamente longo ou umas orelhas em forma de abano. Não seria o meu caso: estão-me sempre a fazer lembrar que tenho um rosto perfeito e um corpo a condizer; Adónis e Apolo corariam de vergonha face a tão legível exemplar e não teriam outro remédio senão dar corda aos sapatos e começarem a frequentar o ginásio mais próximo... acrescenta quem me tece tão agradáveis elogios.
Mas quando era quase chegada a minha vez e o homem dava os retoques finais no desenho do casal retratado, constatei espantado que o nariz da jovem -na realidade pequeno e graciosamente arrebitado, no papel era uma autêntica batata do Entrocamento. No rosto do rapaz de sorriso simpático, a evidência ia toda para uma fileira de dentes enormes -capazes de degolar um cabrito. Surpreendido e desalentado, não cheguei a levar o cigarro aos lábios, deixando pender o braço ao longo do corpo, quase queimando as calças verdes de estimação. Sub-reptíciamente fui-me afastando. E ouvia o meu cabelo a crescer. E quanto mais me afastava, mais o cabelo me crescia...
Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
28 Comments:
Soberbamente bem contada este conto real do quotidiano.
Um abraço.
boa "caricatura".
a caricatura em si mesma!
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espelho devolvido.
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como sempre. BEM!
beijo.
olhe, é melhor isso, que crescer o nariz, como por aí se vê, nos políticos da nossa praça.
Um abraço.
se desses em vir por cá pelos algarves, à minha terra nos agostos ali pró centro; não conheces?!!!eu ac onselhava-te gente que desenha um Adónis perfeito,tu claro!!! mas partes para a estranja e dá nisso. Sorte a tua que te conheço te crescer só o pelo não outra coisa saliente (como refere o anterior coment)
tens um novo mimo ali ao lado, eu recebo duas vezes no mesmo dia, podes entrar à vontade
...e foi então que aconteceu uma coisa espantosa: o bico do lápis
ganhou penas, as penas asas o lápis piou longamente sacudiu a longa letargia
e elevou-se, sobrevoando os perplexos caminhantes e acabando por aterrar na
cabeça do homem que entretanto parara de olhos fechados sentado na relva a escutar
ce subtil glissement progréssif des cheveux sur la tête verte. presque verte...
abraÇo.beijO.
/Xmiling
boas estórias.
excelente o comentário...
:) não escapaste ao lapiz do jovem!! eheheh
Escapaste ao retratista, mas não ao fotógrafo que te fixou. Para que o cigarro não queimasse as calças, para que o cabelo parasse de crescer. Assim, quietinho, para memória futura.
P.S. Pareces magrote...
yayaya
na verdade, já por uma vez quis fazer... mas, mais por quem está a ver feito tu... desisti...
yayay
abrazo europeo
Caro Legível
Olhe a falta de modéstia :))))
Assim como assim estou entre aqueles que o lembram que tem uma escrita fantástica.
Cesaltino que se tinha postado mesmo em frente do legível exemplar, atrás da sua morena mais que tudo, deu pelo volte face e ia já dar o alerta mas o grito secou-se-lhe na garganta diante do olhar quase bravio que o penetrou de alto a baixo.
Tenha um excelente final de tarde
A fotografia? não vi mas pelo conto, imaginei tudo. uma delícia de conto!
Um abraço
normalmente o fim nunca é exactamente como esperamos..
Distraído, ia enfiando o indicador direito no buraco que o cigarro lhe fez nas calças. O que foste fazer, pá. Estás pior que as crianças. Agora, chego ao hotel e levo com o rolo da massa... hmmmmm, espera, nos quartos de hotel não há rolos de massa. Tentava adivinhar que objecto lhe ia ser arremessado quando, vindo do nada, um rapaz todo nu especou à sua frente. Fez um gesto de artes marciais e sorriu um sorriso malvado. O nosso herói só percebeu que era consigo quando reparou que toda a gente se tinha afastado dele. Voltou as costas ao nu, mas apenas para encarar com outro rapaz todo nu - que também fez um gesto marcial, mas sem sorrir. Deodato coçou a cabeça: se não era um sonho, estava cercado por dois tipos todos nus. Esfregou os olhos e respirou fundo antes de os abrir. Confirmava-se, lá estavam eles a olhar para si - não fosse uma pequena parte deles a abanar com o vento que se fazia sentir, dir-se-ia tratarem-se de estátuas.
Mau Maria, querem lá ver isto. Qué que se passa aqui, vamos lá a saber. O rapaz da frente fez um movimento brusco com os braços e gritou algo imperceptível. E depois, disse: eu, Adónis, filho de Cíniras e de sua filha Mirra, amante de Afrodi.... Ouve lá, ó bacano, isso demora muito?, interrompeu Deodato. É que eu já estou atrasado e tenho chatices que me cheguem. Silêncio, gritou o outro rapaz. Eu, Apolo, filho de Zeus e da ninfa... Eu, Deodato, filho de Albertino Cavaco e Alzira Penetra, irmão de... A questão da filiação demorou uns bons 10 minutos a esclarecer. Tempo suficiente para a autoridade chegar e levar os três para a esquadra. No carro da policia, Adónis e Apolo lá foram dizendo a Deodato que lhe queriam partir a fuça toda, que não podia haver ninguém mais bonito do que eles.
Por acaso nunca te tinha dito, mas tens cá uma cabeleira!!!
;)
bjs
Assim soudesse eu pintar!! Pinto a vida de mil cores, tento pintalgar a existencia sempre que posso. Um abraço colorido, ell
Se quiseres corto-to.
O cabelo.
Pois...
boas!
Caricaturas.
eheheh, com que então apanhado na fotografia! Já que não há desenho, haja o prazer dum cigarrito!
alive and kicking, eu mesma
eu estou a imaginar o rastro de cabelo a indicar o caminho que seguiste... eheh! a caricatura, se não fosse caricatura, era retrato e não tinha tanta piada! Boa! :)
mas não podes ser tu o das calças verdes, se não... quem é que tirou a fotografia? ;)
Caricatura muito bem contada, como sempre.
Corpinho de fazer inveja a Apolo e Adónis?...até se enquadra já que te cresceram os cabelos qual Sansão. Mas, quem é que faz de Dalila? Conto para o próximo Papel?
Um beijo
Ora viva meu amigo, legível. Como está, passou bem? Pois, eu já me ri com esta do nariz que mais parece uma batata do entroncamento, e portanto, para além de lhe tecer outro elogio sobre a escrita escorreita que é a sua, sempre impecável, queria convidá-lo nada mais nada menos, para me fazer uma visita a casa minha, um dia destes, pois eu estou de volta. Espero continuar a encantá-lo (se posso dizer isto), com os meus textos, que pretendo sejam mais diversificados. Este espaço da blogosfera, com o apoio de todos , pode ser para mim, o espaço de que preciso para me continuar a ensaiar na escrita, uma vez que, não sei se ainda acredito em salvações outras. O meu bem haja, e lá o espero. Um abraço caloroso para si, amigo. Até breve. Azul.
Já tnha aqui vindo, mas é sempre "engraçado" lê-lo.
Excelente o humor
Quem sou eu para o dizer, mas é sublime o retrato que fazes do mundo, das pessoas...
Não quero repetir-me mas terei de o fazer: estou gostando muito (o gerúndio faz perdurar a experiência no tempo... dizer que "gostei" era mentir)
Abraços
Tubo belo e com um final dentro daqueles parâmetros que poucos conseguem!
Parabéns e um bom e prolongado fim-de-semana! (Se for o caso)
Até breve!
Melhor que o lápis do artista é aquele que usas para nos contares estas histórias. Um lápis afiado que nos desafia ab entrar por esse mundos surreais que tu crias.
Um beijinho
A caricatura da caricatura ficou perfeita! :-) Tem (completamente) o teu timbre, e a tomada de consciência final está 5 estrelas!
Abraço pati.
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