Sunday, February 11, 2007

O GOSTO DE GOSTAR

















Tinha uma saudável paixão pela cidade onde nascera. Saudável, porque nunca o ouvi proferir palavras menos elegantes em relação a outras cidades ou em tom de despropositado despique, possuia uma escala pessoal de avaliação de outros centros urbanos que considerava até muito mais interessantes que o seu (mas não tivera a sorte de neles ter nascido... ) e porque (confessou-me um dia), pensava ter a noção da diferença entre uma cidade e uma mulher. A chama dessa paixão nunca estremeceu, apesar dos desmandos urbanísticos que a sua cidade foi sofrendo ao longo dos últimos anos. Óbviamente que não a culpava a ela mas aos homens que tinham outras paixões(?!) diversas das suas. Quem o queria ver, era a percorrer sem descanso, as avenidas, praças, ruas, becos e travessas, observando enternecido os poucos casos, em como as linhas arquitectónicas da modernidade se podiam ligar de facto e perfeitamente, com a traça urbana de outros tempos e, desalentado por constatar que o casamento contra-natura do pretenciosismo bacoco com a construção a esmo, apadrinhado por interesses pouco claros (uma forma simpática de escrever corrupção), se sobrepunha aos outros.
Entrou na taberna de esquina -uma das últimas casas do género na cidade (por sinal a necessitar de uma boa limpeza geral) e pediu um pastel de bacalhau e um copo de vinho tinto da casa. O homem por detrás do balcão franziu o sobrolho e respondeu: «Pastéis só de esturjão e o vinho pode ser um Touriga da região demarcada do Dão, 2003?»
Lisboa, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

35 Comments:

Blogger Teresa Durães said...

a taberna dos minhotos? mas esse parece ser de um beirão! Que Lisboa, essa terra onde nasci e pela qual tenho uma paixão (mas não nasci em qualquer lado, ah!, isso não, foi na costa do castelo!! mais lisboeta que isto???) está cheia dessa gente nortenha que desceu portugal salaziano em busca de emprego.

noutros tempos.

nos tempos onde as meninas subiam e desciam a R. do Carmo para serem vistas e darem uma espreitadela a quem lá passava
- viste aquele?
- claro que vi mas olhei de esguelha. se quer algo de mim, que venha falar. Não sou nenhuma rameira!!

E o Chiado, de prédios que respiram história, agora cheio de bacocos que nem percebem o que vêem, nã!, contou a minha avó imensas histórias quando via o Fernando Pessoa sentado na esplanada e passava pela janela onde Carlos namorou Maria para chegar a casa.

eheheheh

12/2/07 16:56  
Anonymous Anonymous said...

mas... estava esgotado. lembrou-se que no douro havia boas colheitas e optou por um tinto encorpado. a garrafa era muito velha e o rótulo não se percebia. mas abriu o vinho e deixou respirar cada segredo. o decantador arredondou as formas e o copo alto de cristal chegou-lhe à superfície da boca. o nariz foi absorvendo o aroma e entupiu-se. a autópsia revelou respiração mais do que interrompida. o homem nunca mais bebeu...

non sense, me

beijinhos *

12/2/07 16:59  
Blogger tb said...

Tanto escrito em tão poucas linhas, por onde a vista alcança e os sentidos se perdem entre o que foi e o que é.
Como sempre esta tua forma de ser/escrever, encanta-me!
Beijinhos

12/2/07 18:11  
Blogger passarola said...

a minha chama também não estremece... ele há muita coisa boa por aí, e eu até gosto muito de passear... mas é mesmo da minha cidade que eu gosto!!!! Com todos os defeitinhos que possa ter. Uma boa semana :)

12/2/07 18:37  
Blogger poca said...

o casamento contra-natura do pretenciosismo bacoco com a construção a esmo, apadrinhado por interesses pouco claros...
a tradição foi vendida à corrupção... valha-nos nós!

12/2/07 18:56  
Blogger Teresa Durães said...

(se treinares esse teu rap'fim, entras para a família Von Trapo!!)

12/2/07 22:40  
Blogger Licínia Quitério said...

Comeu um pastel. Bebeu um copo do tal vinho.
E não é que gostou?
Uma cidade não é uma mulher, pensava. No entanto, ele continuava a gostar da Gertrudes. Gostou dela aos dezoito, de mini-saia, gostou aos trinta, toda de ganga com pedacinhos de espelho, gostou aos cinquenta, com o cabelo às riscas. Se calhar, ainda gosta dela, velha, vestida à espanhola. Já não sabe a alecrim. É mais incenso. Mas gosta. De gostar dela.

Aquele sabor do esturjão deixou-o assim. A pensar em cidades... Em mulheres...


P.S. Também fiz BUUUM! quando aqui vim. Ele há cada virtualidade!...

Beijinho.

13/2/07 09:10  
Blogger Cusco said...

Gosto de ir à taberna. Gosto de ir à taberna da minha esquina. Na taberna da minha esquina o dono limpa a pedra do balcão com um pano sujo e a cheirar a vinho.
Na taberna da minha esquina os homens bebem copos de três, figo e bagaço e cantam ao desafio quadras que ouviram nas feiras. Na taberna da minha aldeia o gato mia debaixo da mesa onde as cartas batem uma discutida bisca. No fogo por vezes, uma chouriça retirada pingando do fumeiro ,deixa cair um sabor a povo.
Mas o melhor é que a taberna da minha esquina existe mesmo.
E a pedra do balcão está sempre limpa.

Até breve
SE DEUS QUISER

13/2/07 10:20  
Blogger Maite said...

Caro Legível

De facto. Apesar dos desmandos a que a cidade está sujeita, ela sempre resiste num ou outro ponto como se possuisse vontade própria.

Tenha um excelente dia

13/2/07 10:38  
Blogger augustoM said...

Mudam-se os tempos, mudam-se os gostos.
Ainda me lembro das tabernas de Lisboa, onde o vinho não tinha direito a garrafa, mas a pipa e dos copos, em especial os "três", que eram enchidos directamente do bojudo vazilhame.
Dos pastéis de bacalhão não me lembro, mas de torresmos e de jaquinzinhos fritos sim, e o cheiro a vinho que pairava no ar, que só de respirar era meia bebedeira. Bons velhos tempos.
Um abraço. Augusto

13/2/07 13:38  
Blogger isabel mendes ferreira said...

gostar de escrever e de fotografar...recontando "histórias" de recantos...

sabe...de repente parecia Roma...


juro.



________________beijo.



afectuoso.

13/2/07 15:39  
Blogger Bernardo Kolbl said...

Tá-se bem, portanto. Boa tarde.

13/2/07 15:52  
Blogger mixtu said...

touriga do Dão... excelente...
cidades.. hoje são locais de desencantos, de desencontros... impessoal..

excelente escrito

abraços

13/2/07 16:00  
Blogger robina said...

Ao que tu respondeste:
- Podem ser 2 copinhos de vinho branco :-)))

13/2/07 17:10  
Blogger JPD said...

Olá Alberto

O tirocínio do pastel de bacalhau tem muito que se lhe diga.

Introdução aqui -- não a corrupção, essa já dela trataste -- mas uma corruptela, qualquer dia nem pastel de palmeta se apanha!

Um abraço

13/2/07 21:08  
Blogger Luna said...

E assim aos poucos se vai perdendo a identidade.
beijos

13/2/07 21:25  
Anonymous Anonymous said...

vim só avisar que entres devagarinho lá no blog... não quero assustar ninguém. beijinho *

13/2/07 23:32  
Blogger Sea said...

«Pastéis só de esturjão e o vinho pode ser um Touriga da região demarcada do Dão, 2003?»
Onde é que fica a taberna mesmo??

14/2/07 13:35  
Blogger Pepe Luigi said...

Agradável narrativa sem haver necessidade de grandes linhas de escrita.

Obrigado pela tua passagem no meu sinestesia-crepuscular.

Um Abraço.

14/2/07 18:13  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Está uma verdadeira "DELÍCIA" este texto.

Pois assim se "fala" português - pasteis de bacalhau e vinho tinto - tradição dum povo que a modernidade - não alterará.

Happy Valentine's Daiy

Beijo com carinho

14/2/07 18:35  
Blogger david santos said...

Olá!
Legível, este teu trabalho, embora oriundo de Alberto Oliveira, não podia ser mais exemplificativo dos recuos, pelo em termos de locais de encontro e de ajuntamento de pessoas, que tem havido em muitas cidades deste País. Hoje reina a ingratidão, a falsidade e, até, outros males que abundam por este País dentro, derivados da desligação, cada vez maior, entre as pessoas. É só grandes empreendimentos, com objectivos já bem claros: corrupção.
Parabéns.
Ah, já me esquecia! Sabes por que razão o meu calendário anda adiantado? Não digas a ninguém, pois isto é segredo. Quando eu nasci, como sou de uma família pobre, a minha mãe só me registou quando conseguiu dinheiro para me comprar umas fraldas, logo, no registo tenho um dia de nascimento e na idade, de facto, tenho outro. Estou a brincar! Eu ponho a data em que torno a fazer outra postagem. Mas como te deu na cabeça olhar para a data?
Abraços.

14/2/07 18:46  
Blogger Bernardo Kolbl said...

Boa tarde e um abraço. Um pescador, portanto?

14/2/07 19:42  
Blogger Fátima Santos said...

"ai cum carago!" enquanto o punho bate meio envergonhado no balcão

14/2/07 21:20  
Blogger 919 said...

eu ia jurar que tinha botado comentário aqui!... se calhar, com estas mariquices do 2.blogger, foi parar aonde não tinha nada a ver, ou tá escondido num qualquer desmando urbanístico!...

14/2/07 22:41  
Blogger Teresa Durães said...

eu a pensar que ia ver aqui um parzinho de namorados mas afinal o taberneiro veio para ficar...

14/2/07 23:25  
Blogger manhã said...

mas que cidade é esta que tem pasteis de esturjão?
lembra-me um certo requinte por oposição ao pastel de bacalhau.
A cidade onde nascemos,e a cidade onde vivemos os nossos melhores momentos, voltar muitos anos depois deve ser uma experiência terna mas não isenta de fúria!

15/2/07 00:09  
Anonymous Anonymous said...

Dois copinhos de vinho branco e um pastel de bacalhau.

não temos pasteis de bacalhau.

- Então pode ser três copinhos de vinho branco;)

15/2/07 00:16  
Blogger A. M. Catarino said...

hmmm... um caso de amor não correspondido

ele que não se preocupe, há muitas cidades ;-)

abraço

15/2/07 01:02  
Blogger SMA said...

Tudo muda e queremos que muda... mas esquecemos que a mudança muda...

O texto é simplesmente fantastico...

Bjo doce

15/2/07 01:41  
Blogger Joana said...

Eu cá para mim é mais croquetezinho ou aquelas argolinhas de lula fritas... bem se um dia fores ao ISCTE há lá um bar que dessas iguarias ao molhão... copos de vinho é que não... mas já esteve mais longe de não ter!...

Gostei da tua história!
:)
bjs

15/2/07 01:46  
Blogger A. said...

...o gosto de gostar.de saber.de escrever.bem.de comer.de saborear.de pintar palavras em tons de azul.




um gosto.vir aqui.









(...tenho estado fora.trabalho.
agora de volta Al.)


um beijinho muito grande sempre nos nossos tons.
:)

15/2/07 02:39  
Blogger Toze said...

Pastéis só de esturjão ???

Pode ser :)

15/2/07 16:38  
Blogger Rui said...

Angelino saiu da tasca e meteu-se a caminho do Cais do Sodré, puxando o objecto por uma corda.
As pessoas com quem se ia cruzando, não lhe deram particular atenção. Estão habituadas a loucos, que os há com fartura por aí.
Chegado à esquina com a Rua do Alecrim, olhou lá para cima e exclamou: - Perfeito, é já aqui!

Tirou do bolso o Borda d'Água de Fevereiro e consultou a tabela de marés, depois de o voltar a dobrar cuidadosamente, retirou de outro bolso um papel mais pequeno e gasto. Era o horário dos barcos para Cacilhas.

- Mesmo a tempo - disse ele, depois de consultar o relógio do outro lado da Praça. - Este gajo aqui a meio é que me vai obrigar a manobras...

Subiu a rua a custo de passo estugado e algum suor, sempre puxando tão estranho objecto. Já no Largo Camões, certificou-se de que tudo estava a jeito. Colocou-se a meio da estrada e ignorou as buzinadelas dos automobilistas. Eram 16h31 e picos.

- 30 segundos para a partida... chega bem.

Sentou-se no carrinho de rolamentos e inspirou fundo antes de começar a dar balanço. Ia precisar de muito se queria chegar a Cacilhas antes do barco das 16h32.
Aquela estátua no meio do caminho é que lhe estava a lixar os planos.

15/2/07 17:03  
Blogger Maria P. said...

Um dia disse:
Nunca me perco na minha cidade, mas alguém mudou a minha rua.


Beijinho

15/2/07 22:05  
Blogger Unknown said...

Olá!

não posso deixar de iniciar o comentário com o elogio da escrita. Estou ate com dificuldade em adjectivá-la à altura... :)

Quanto ao convite que faz a reflectir acerca do (des)equilíbrio entre o progresso e a tradição (acho eu; pelo menos assim o interpreto), está igualmente perspicaz!

Um abraço

17/2/07 15:43  

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