IMAGEM & TEXTO
Pergunto-me o que vou fazer com esta imagem pois não encontro à vista desarmada motivo para lhe subtrair uma história com o mínimo de credibilidade, de preferência com personagens pouco ou nada comuns e um final dramaticamente inesperado. Quando acabei de tirar a foto, reparei que numa das varandas (que convenientemente não aparece na imagem) um homem olhava na minha direcção e logo a seguir marcou um número num telefone móvel. Esta situação bem podia configurar a narrativa pretendida pois não seria de todo descabido que o cidadão estivesse a contactar a polícia, denunciando que no imóvel em frente, alguém lhe devassava a privacidade. Mas essa hipótese já a afastei antes de iniciar estas letras, porque o meu telefone tocou e do outro lado estava o homem da varanda a lembrar-me que tinha ficado de passar aqui por casa para ver a avaria no televisor. A menos que... sim, no andar da marquise com persianas amarelas, uma mulher tinha-se debruçado e gritado algumas palavras (que não entendi devido à distância) na direcção da rua para um homem com uma gabardina côr de camelo. Este, voltou a cabeça para cima e de imediato inclinou o torso para trás, abrindo num gesto rápido a gabardina e voltando a fechá-la. O que a mulher da marquise de persianas amarelas viu, não sei; mas meteu-se para dentro e não voltou a aparecer. Minutos depois de ter tirado a fotografia, fui à rua comprar tabaco e o velhaco do Mendes dizia -rindo-se alarvemente, para um cliente «Aquela gaja do sétimo, do prédio da farmácia, é completamente maluca. Deixa o marido sair e só quando o tipo chega à rua é que lhe pergunta aos berros se leva a camisola vestida!».Depois voltou-se para mim «E o senhor Gaspar o que deseja? Ah! o tabaco da ordem... Não leve a mal a minha curiosidade, mas... nunca lhe passou pela cabeça -de tantas vezes que vem comprar tabaco... não voltar?» e fazia gestos com o polegar em direcção ao lado da rua ondo moro. Decidi-me: não volto mais ao texto para a imagem...
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
34 Comments:
Anacleto estacionou a velha e gasta furgoneta em segunda fila, baixou o vidro da porta com as mãos - que o elevador há muito tinha metido reforma - e olhou em redor.
Foram bons aqueles tempos... as saudades do antigamente, pensava ele.
Saiu para melhor apreciar a vista. De nariz no ar, sentia um misto de alegria e tristeza: alegria pelo que tinha sido, tristeza pelo que não voltaria a ser. Nisto, Mendes aproximou-se sorrateiro e tossiu.
- Atão, Bom dia!
- Uh... bom dia...
- Reparei que estava a olhar para a farmácia.
- Eu... não...
- Deixe-me adivinhar, vem comprar daqueles comprimidos azuis - fazendo um gesto com o cotovelo na direcção de Anacleto, piscava o olho e sorria.
- Comprimidos?
- Ora, ora, deixe-se disso, que eu ali da tabacaria bem vejo o movimento da malta "nova" - desenhando as aspas no ar. Não me interprete mal, eu cá acho muito bem, se um gajo já não gás suficiente, não há nada como comprar uma bilha. Felizmente, cá eu, nunca precisei dessas cenas - leva as mãos entre as pernas num reflexo condicionado. - Não, cá eu não preciso disso.
- Olhe, eu não sei do que é que está a falar, mas sempre lhe posso dizer que estou é a olhar para as marquises. Sabe, eu sou da industria do alumínio e vinha a reparar como as varandas quase todas têm marquise - olha novamente à sua volta. Já reparou? antigamente é que era, nós não parávamos lá na oficina, não tínhamos mãos a medir. Chegávamos a ter lista de espera de 3 meses! Agora não, ninguém quer marquises. É um negócio que morreu...
Mendes nada disse, limitava-se a coçar a cabeça e a olhar para aquela criatura como se fosse de outro planeta.
Anacleto entrou na Iveco e alguns pedaços de ferrugem cairam quando bateu com a porta.
Quando a nuvem de gasóleo se dissipou, Mendes ainda conseguiu ler na lateral do veículo, em letras sumidas: Marquises Anacleto - Serviço Rápido e Completo
Tantas histórias que se podiam encontrar aqui, tantas vidas. Sem querer contar, esboçaste algumas, todas magníficas.
brincalhão.. e lá está a história perdida no meio das histórias, como uma janela perdida no meio de todas as outras janelas.. Eu volto, para confirmar que não se acabam as histórias das imagens. Até já..
querido legível. o rui já disse tudo. eu quaso que faço de propósito para vir ler o teu e o dele. e só comento a seguir. muito confortável. porque já foi tudo dito. e muito melhor do que eu o faria. beijinho muito grande ;) *
este homem está cada vez mais parecido com um outro que andava por estas lides! este estilo em que a cada palavra se lhe pressente o sorrisito (que só para ele guarda o belo sorriso e, quiçá, a gargalhada) a deixar-nos (me?) assim a modos que desesperadamente a desejar pegar (neste caso) no prédio e amandar-lhe um balde de água (escrito, claro!)sem lá vai nem nada e só depois de ele vir, de sorrisito, abrindo o celofane do macinho de tabaco...direitinho para casa.
Ó Legível, tu hoje estás imparável!... Este teu post é tão completo como um jantar num restaurante de Folgosinho, que agora não me lembro o nome!... A gente entra, senta-se, e é só ver chegar iguarias para a mesa - comem os olhos, comem os dedos, come o estômago... é uma verdadeira orgia!... :)))
Todos nós vamos fazendo da nossa varanda a nossa janela indiscreta.
jinhos
Isso é que era bom, Alberto!
Com tanta agilidade, não terás outro remédio.
(desde que te não vires para o meu prédio, bem entendido!)
Quanto ao mistério do sujeito da gabardina, é fácil desvendá-lo: o sujeito vestia umas boxers com o emblemas do Atlético estampados.
Um abração
cumpridora? medricas, talvez. leio noutra altura, agora não consigo.
Volta que estás perdoado! Uma maravilha olhar esses sítios "marquisados" e fazer-nos rir...só com muita fantasia. Abç
Informação preciosa para se perceber de quantas iguarias é composta esta prosa: o restaurante em Folgosinho chama-se, parece-me, o "Albertino"... pura coincidência...!
impressionante esta imagem...isto é, já sei que é na margem sul...almada?
as vidas que por aí discorrem, se enovelam ou não, muito perto umas das outras e possivelmente sem nunca se encontrarem...conhecer toda essa gente seria trabalho de uma vida e nada mau como tarefa...
(...) e eu pergunto-me o que vou fazer com o meu Blog, quando outras há, onde estão escritas coisas assim...
... gosto das varandas abertas, detesto esse alumínio de marquises
o teu vizinho estaria muito mais saudável se grelhasse um peixinho fresco, comprado na lota da Costa, e se sentasse na varanda a comer e beber com os olhos perdidos no horizonte do mar da palha
mais peixe menos tabaco, mais varanda menos marquise, mais rio menos automóvel, mais T-shirt menos gabardine ... talvez se safasse da alzeihmer que o ataca e o fez esquece de vertir slips, calças, meias, camisa
pobre mulher ... bem pode gritar e arrepelar os cabelos
;)))
sorry - vestir não vertir
O Homem tinha uma gabardine "cor de camelo"?!Peço explicações para essa cor.Cor de camelo?Camelo escuro ou camelo claro?Cor daquele camelo dos cigarros "Camel" todo aloiradinho pelo sol, o camelo do pacote dos cigarros do gajo com cabelos cor de cenoura , o gajo que aparece com barba de 7 dias (sim , esse ,o primo do gajo do Marlboro!)?Elucida-me, vá!Este "elucida-me" soa estranho depois de algumas vezes repetidas...elucida-me...elucida-me...é primo do "homicida-me" (por ser chata).Homicidas-me?Fica giro.Que meti para aqui "primos" a mais?Que queres, somos todos uma grande família porque o mundo , dizem, é pequeno.Dizem!!!!Porque cá para mim, o mundo desses vizinhos do prédio cinzentão é muito muito grande...tão grande que nem se encontram!Nem no elevador!
eu diria que quem tem essa alma de artista confesso(li por aí algures e sorri com vontade, do comentário...)...:) não pode nunca demitir-se de uma boa história a partir de uma imagem comum...comum mas mt "cheia" de histórias lá por dentro.
fará isto sentido????
tou cheia de tosse e febre...se não fizer,amanhã volto cá...
beijos....
com máscara....:)
Um excelente texto, sem dúvida alguma...
de qq forma é pena, que eu estava a gostar da narrativa ;-)
abraço
Para quem não ia dizer nada... :)
Adorei a foto.
não voltar... conheço histórias dessas... foi comprar tabaco e não voltou, inclusive depessoas que não fumam...
yayayya
abraços
:-)
Meu amigo-irmão, ler-te é um prazer que me dou. Depois de um certo tempo na net, vamos depurando os nossos locais de visitas. E mesmo assim, o tempo por vezes é tão curto!
(já que agora reparaste melhor na mensagem de rodapé lá no "ilha", espero que repares noutra mensagem... não lá, rss!... um espaço que gostaria fosses conhecer... já tens o mapa: basta ver! rss!)
Um abraço fraterno.
um óptimo fim se semana para ti também, amigo virtual....
Depois de texto sem imagem, imagem e texto, só falta só imagem. Será que uma imagem pode ser "legível"?
Abraço
Muito bom... como sempre.
Gostei particularmente deste texto amigo legivel. Eu que sou uma voyeur da vida lá fora e da minha própria vida... que as faço cruzar e com o que vejo observo, analiso, sinto , toco, deixo que me toque , e uso como base para o que escrevo gostei desta imagem e deste texto de forma especial.
Até breve amigo e mais uma vez parabens pela acutilante e estimulante visaõ que nos propocionaste.
Isabel
Mas que vizinhança sempre tão cheia de histórias e cusquices... e eu que adoro cuscar!!!
p.s.
depois do meu retiro voltei!
desculpa a demorada ausência, mas já está tudo explicado na mariazinha!
bjs e bom fim de semana com muito sol!!!
Eu não tenho folgosinho para tanto. Tu não paras e manténs o nível de qualidade. E eu que me desunhe para dizer alguma coisa que não um lugar-comum (ou sobre-comum, ou lá isso, que agora com o TLEBS eu deixei de saber gramática). Hoje ando muito atarefada e só marco presença. Estou naquela marquise de estores amarelinhos a fazer pataniscas(e patanisca também).
Já agora, podes dar-me um e-mail que não esteja de folga? É que eu ando aqui pela net a fazer uma proposta (desonesta, claro) e não queria excluir-te.
Obrigada, muito, pelo teu apreço que é de vice-versa.
Dá beijinhos ao senhor da tabacaria.
E guarda um para ti.
Esta imagem faz-me lembrar pilhas de caixas de fósforos... Com algumas variações cromáticas (variantes de cinzento ou castanho...), ritmos de cheios e vazios... Nunca experimentei tirar fotografias às janelas dos vizinhos, mas deve ser bom para criar novas amizades... 8)
Bom domingo e beijinhos :)
Mudei de casa outra vez. É sina. Pois. Abraços.
A familiaridade do Mendes é contrastante com a arquitectura do prédio... Efectivamente, a pergunta indiscreta, que faz ao Gaspar, faz todo o sentido!...
Claro que isso já lhe havia passado pela cabeça!! A quem nunca passou? Largar tudo e partir...mas onde encontraria ele o aroma daquele tabaco da ordem?!!
- Meu caro amigo Mendes, permita-me que lhe devolva a pergunta: que raízes o prendem a si, homem sem compromisso visível, que raízes o prendem a esta terra?
- A mim? Então não sabe??
E levantando as calças até ao joelho, exclamou:
- A mim não me crescem raízes mas...varizes!!
Tu és um alquimista!
Prontussssss!
:-)
Bom... sinto-me obrigada a assumir que não compreendi.
Espero que esta confissão não sirva propósitos de diminuir a qualidade da escrita, mas que possa, antes, ser prova da minha diminuta tenacidade...
Sou admiradora inquestionável da ironia e qualidade que aqui se pratica...
Alquimista...gostei.Prontus!
;)
Al.Oliveira.
...infelizmente despareceu.
:/
Ando por aqui agora...a tentar refazer o que foi desfeito.
Quis vir deixar o novo endereço e em tons de azul,de paz e de céu
...deixar um abraço forte.Para ti.
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