O QUE o OLHAR PERMITE
No momento em que pressionei o obturador da câmara fotográfica, eu não sabia nada sobre a pessoa que aparece na imagem e tenho agora a possibilidade de observar com maior amplitude que antes o visor da da máquina não me permitia. Que ficou na história desta fotografia acidentalmente, porque a ideia original era a de registar apenas a paisagem urbana sem gente lá dentro, mas a pessoa saiu da minha rectaguarda iniciando a subida e só dei por ela "dentro da câmara" . Uma vez que se tinha instalado optei por a deixar ficar, até atingir o topo da escadaria.
É uma mulher, que a configuração física assim o faz supor que seja, entre os sessenta e tais e os setenta e poucos, porque o trajar e a necessidade de se socorrer do corrimão para vencer os últimos degraus, o deixa adivinhar. É uma cidadã anónima -não porque o rosto esteja voltado para o lado de lá da imagem; o facto de levar uma mala de mão, sugere não ter ido às compras mas que vá (ou regresse...), de uma visita a um familiar ou amigo. Provavelmente vive só; talvez tenha enviuvado recentemente. Por regra, as pessoas destas idades gostam de se sentir acompanhadas até por uma questão de segurança; de outras razões não quero especular, uma vez que se sugere as mais das vezes, que o hábito tem mais peso que o amor... ou a amizade.
Termino este texto tal como o comecei. Continuo sem saber nada desta mulher. Apenas fiz suposições sobre a sua pessoa Porque ela, embora tenha deixado aqui impressa a sua figura, o corpo passou-o para o outro lado da imagem. O lado inevitavel da vida; até um dia.
Foto de : Alberto Oliveira
Última hora: Acabei de receber um e-mail dum tal Emanuel Ribeiro, pensionista da Marinha de Guerra Portuguesa. Indignado, informa que a figura fotografada e citada neste post é a dele próprio. Estou siderado e... inconformado. Como é possível o homem reconhecer-se tão bem de costas e... tramar-me a escrita?!
22 Comments:
Somos todos espectadores e ao mesmo tempo intervenientes do processo histórico... fazemos parte da paisagem, mais o amor, a amizade e a solidão, mais os pensionistas da Marinha de Guerra Portuguesa, e às vezes, sem queremos ou sabermos, atravessamo-nos no olhar de outros. Queiramos ou não, construímos a história de há pouco e nunca saberemos a importância dos nossos gestos mais simples e insignificantes. Grande parte das vezes nunca saberemos…
A mim pareceu-me que esta pessoa levava ou dava a mão à própria sombra…
Bom fim-de-semana Legível.
BJ GR
SK
Por essa e por outras é que , quando quero postar fotografias de alguém, opto pelas minhas!Ha-de vir um pensionista de qualquer que seja o ramo dizer que eu sou ele!
A fotografia do post é muito bonita, mas triste. Sente-se cansaço na pessoa fotografada. Será que o escrevo , influenciada pelo que escreveste ?
Continua a ser uma senhora. Vem do funeral de alguém amigo, traz às costas uma vida de sofrimentos e enterros, à medida que a sua agenda se vê diminuir, sobre o número de óbitos.
Assim como imensos anónimos que se cruzam todos os dias também nós os somos, cada vez menos uns para os outros, mas mais um corpo sem rosto no meio da cidade.
Só te sei dizer que não sou eu mas nunca fiando... :)
Fizeste bem em deixá-la entrar! a paisagem urbana já é tão desumanizada, se na foto não estivesse essa senhora era uma escada sombria, sem alma...
Quanto à Senhora, conheço-a é a minha vizinha do 2º direito, foi telefonar à filha para lhe dizer que o frigorífico estáva vazio e que é preciso comprar leite, manteira, carne, ovos, brócolos, uma pescadinha; tudo para o almoço que elas são de muito alimento, apesar de viverem sós!!
A filha nunca casou, dizem que anda metida com o patrão... por isso é que não lhes falta roupa! o homem tem uma loja de pronto-a-vestir e as empregadas andam sempre muito "arrumadinhas";
Não te preocupes com o telefonema do Ribeiro, também o conheço! tem destas coisas... é um ciumento! está apaixonado pela D. Perpétua e não a quer ver no teu retrato... mas mais valia que fosse dar atenção à mulher!! é reformado, era marinheiro!! estava habituado a ter uma em cada porto...
Vidas...
Sinceramente, achei este post muito calmo e sem a habitual surpresa. Claro que não podia ser, amigo Alberto!
Gostei imendso deste texto.
Um grande abraço
Acho graça ao modo como segura a mala , assim com a pega na mão, lembra-me a minha mãe que também tem e segura as malas assim , nada de tiracolo que é muito modernaço!!
Para salsolakali:
Palavras cheias de sentido, amiga Salso! E de quem está atenta à vida que gira à nossa volta. E aos pormenores.
Prova disso é o teu parágrafo final no comment: "...que esta pessoa levava ou dava a mão à própria sombra...". Mais "material" para outro texto. Boa!
Uma boa semana!
BJ.
Para i&c:
E fazes muito bem, que anda meio-mundo a tentar enganar o outro meio.
Mas eu não liguei ao Emanuel; o gajo quando tem uma folga de "rilhafoles" até afirma que é o Bill Clinton (na fase mais hard... rock ;) manias.
Não te quis intristecer! Longe de mim tal ideia. Embora às vezes, me passem pela cabeça algumas núvens de formalismo, o que eu desejo é que este blog transmita para o exterior o meu sorriso de satisfação por...estar vivo.
Um resto de bom domingo!
Para vodka e valium 10:
É interessante a tua abordagem ao "assunto".
Da agenda da senhora cada vez com menos nomes até ao cruzamento anónimo dos nossos rostos sem rosto.
Gosto de ouvir o pessoal que aqui vem e isso incita-me a ir falar convosco nos vossos sítios. É um diálogo de idas e vidas* muito estimulante.
*Escrevi mesmo "vidas".
Para sotavento:
Já não digo nada!!
Da próxima vez, quando andar na rua a fazer fotos, levo o James comigo (assim como quem não quer a coisa)e peço-lhe para ir tirar nabos da púcara...
Para ugaju:
1 - Se o gajo saiu de um submarino, eu que fiquei mais abaixo, já fui pró maneta!... afogado; sem apelo nem agravo.
2 - Sim; só pode ser uma pensão; numa pasta daquele tamanho não caberia um hotel...
3 - Já lhe ouvi chamar muita coisa; rendimento é a primeira vez...
Ajudaste pois. A deversificar a coisa...
Para segurademim:
É pá! Se eu adivinhasse que conhecias a senhora nunca teria tirado a fotografia!
Espero bem que não espalhes a notícia lá no teu prédio senão tenho a vizinhança aqui toda caida.
E pelos vistos tu sabes ao milímetro tudo o que se passa com o pessoal que aí mora.
Também conheces o Ribeiro marinheiro?! Mas afinal... que é que tu fazes na vida? És investigadora social?
PS: O Ribeiro marinheiro garantiu-me que só teve uma mulher na vida. E por sinal, conheceu-a no porto de Leixões. É que há marinheiros e... marinheiros.
Para jpd:
Eu às vezes bem tento. Mas no último instante... É assim como uma espécie de assinatura... legível.
Tem uma boa semana!
Abração.
Para jrd:
É sim senhor! Mas -e a propósito?! de corsário, por mero acaso, tive conhecimento de um contra-almirante que tinha um olho de vidro... . Foi aquilo a que se chama a excepção à regra óptica.
Eu nem quero imaginar as marinheiras num submarino; aqueles espaço tão acanhado...
Pontuais ou não, são sempre um prazer.
Para manhã:
É uma característica das pessoas com mais idade; não andarem com as malas a tiracolo.
(Reparam em tudo!)
Finalmente dei cabo da sangria! Ou foi ela que deu cabo de mim?!
Para ugaju:
Não me importo nada, pelo contrário; embora a partir deste momento, ao sair à rua, tenha de ter um pouco de paciência com os pedidos de autógrafos. Já estou a ouvi-los: «Vem aí o Fantasiado de Camões!»
Para manuel:
Espero bem que estejas a escrever à séria; é que, com um comentário desses e com outros de igual teor, que alguns meus amigos fazem o favor de me honrar, posso arriscar-me a ser editado, objectivo que, como sabes, persigo desde que me conheço.
Até a minha ironia rsss ficou muda...
Abraços.
Peço desculpa, mas eu não vejo ninguém na foto! Estão a escrever sobre o quê? mau...
(entra a música da Twilight Zone)
PS - é só mesmo para baralhar tudo.
Para rui:
Vê outra vez! de vez em quando a mulher desce a escada e mais tarde... volta a subir. Nesse meio tempo, não está lá, é evidente.
Ao ver a imagem também me pareceu ser um homem... mas como as imagens podem nos iludir... e que importância teria se homem ou mulher?... o que farias com o andamento da crônica, se me prenderia ou não a atenção, se eu gostaria ou não - como leitor - isso é que me interessava! - e prossegui, como leitor egoísta que sou!!! E não é que o texto ficou danado de bom?! Valeu, amigo.
(demorou, mas comentei!)
Para batista filho:
Sem dúvida que o sexo não interessaria (o sexo da figura na imagem, convém esclarecer...).
O que interessa é ter prazer no que se escreve e pretender "passar" esse prazer a quem lê. Há quem chame a isso partilhar...
Abraço.
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