HISTÓRIA ANTIGA
Em tempos, escrevi um texto para a tela cuja imagem acima se edita. Porque era uma história despojada de qualquer sinal de alegria, aliás como o título da obra sugere ( "História triste de uma camisa que nunca saiu à rua"), hoje lembrei-me de a trazer de novo à colação -à camisa, que as histórias nunca as repito, dando-lhe um tom mais vivaz e se possível um sorriso de ponta-à-ponta do colarinho. A ideia é essa, a disposição é a melhor, vejamos como me safo após os parágrafos seguintes.
Esta camisa, comprei-a há uns largos anos atrás, na Rua Augusta e custou-me uma pipa de massa. No momento em que a vi na montra foi como se ela falasse comigo «Anda cá que eu sei que sou linda e se quiseres posso ser tua!» Não resisti à provocação e levei-a comigo. Mas prometi a mim próprio que apenas a havia de vestir quando me casasse. Porque era de facto uma camisa muito especial; dava gosto (e gozo) meter-lhe os botões pelas casas adentro ou afagar-lhe os punhos e o tecido (uma qualidade de seda extraordinária) parecia ter vida própria. Metia-a numa gaveta do guarda-fato e esperei que a minha história de vida andasse mais para a frente.
Passados meia-dúzia de anos casei-me. Um amigo ofereceu-me uma camisa e fez questão que a estreasse no dia do casamento. Claro que não iria explicar ao meu amigo que tinha uma outra camisa guardada para esta ocasião há tanto tempo. No mínimo pensaria que eu antes de casar devia ter passado por uma consulta de psiquiatria. Abri a gaveta, olhei-a nos olhos e expliquei-lhe a situação. Jurei que a apertaria ao meu corpo quando fosse pai pela primeira vez.
Ser pai pela primeira vez foi uma alegria das antigas.
Estive em festa uns três dias seguidos. Ao quarto, lembrei-me da camisa e fui à gaveta com uma desculpa engatilhada. Não foi necessária. Quando abri a porta do guarda-fato percebi logo. Dependurada no varão dos cabides, a partir de uma gravata azul com bolas amarelas, que lhe envolvia o colarinho, balançava ainda quente a camisa a quem eu tanto prometi e nada tinha cumprido. Cansada de promessas e de esperar, suicidara-se.
Óleo e fotografia de: Alberto Oliveira.
33 Comments:
Boa tarde.
Gostei do texto, mas não posso deixar de colocar algumas questões:
Será que vale a pena guardar as coisas para uma ocasioão especial?
O que é que define uma ocasião especial?
Ambos os casos que referiste são, de facto, ocasiões especiais, no entanto, não será um simples "jantar fora" com a pessoa que amamos uma ocasião especial?
Repito, gostei do texto. Muito mesmo... :o)
Caso para dizer: nunca deixes um objecto especial para uma ocasião especial, mas sim, utiliza um objecto especial e assim tornarás a ocasião especial:)
A camisa suicidou-se? pudera, tanto tempo à espera de promessas não cumpridas...
eu, não tenho nada por estrear, por vezes até saio da loja já vestida com a roupa nova!!
Comigo acontece mesmo o que dizes -a roupa chama-me! vou no fim da rua e ainda oiço: então demora muito? ai, ai, ai, ai não tarda nada vou parar a outro corpinho!... esta é uma ameaça que não aguento! dou meia-volta, entro na loja, experimento e se me está bem, pago e desando...
No dia seguinte, lá vamos - eu e a roupinha - porta fora a passear; garanto-te que tenho companhia diária e variada para o desfile...
...Coitada da tua camisa deve ter estado um bom par de dias ali especada até passar para a tela... a ver um bocadinho de céu lá fora... torturante! compreendo-a, antes a morte que tal sorte :)
A tua camisa sentiu a dor da rejeição...dizes que ainda estava quente quando a encontraste, morta, a baloiçar suavemente no cabide...tentaste alguma manobra de ressuscitação? Boca a boca? massagem cardiaca?..não: limitaste-te a constactar o óbito. mesmo que ressuscitasse , jamais te perdoaria.
Por isso, quando compro uma peça de roupa , visto-a logo no proprio dia ou no dia seguinte!
Como eu a entendo.
abraço
Quem sabe brincar com as palavras até uma simples camisa dá uma boa estória.
Excelente texto.
Agora é normal que não quisesses usar a camisa ao fim de seis, sete, oito ou mesmo mais anos depois.
Um abraço
Olá Alberto
O quadro está admirável.
(Eu não sei se técnicamente estará correcto o que vou escrever) mas essas varições sobre um tom, essas nuances cromáticas,achos perfeitas e muito equilibradas. A seguir, a precisão do traço, revela uma mão muito segura. Gosto muito.
O texto, é de qualidade superlativa. Bem escrito, bem disposto e com um final a surpreender na devida conta.
Boa e fian ironia.
Um enorme abraço
Está óptimo o texto!
Olha, e fica a mais um sentir, neste caso contado por uma camisa, de uma coisa que sempre me entristece: que não cumpram o que me dizem (nem precisa de ser uma promessa).
[Estará no céu das camisas, certamente :o)]
É...
Isso dá que pensar.
Será que a camisa não morrera já de cansaço, de velha? Triste e abandonada...
Lição de vida:
Não prometer nada que não possamos cumprir.
Se mesmo assim prometemos e não cumprirmos, tentemos remediar a coisa da melhor forma...
E depois... oh meu amigo?!
Não se abandona uma camisa assim...
;)
BJ
... Para fins de desencargo de consciência providenciaste um enterro digno?... sem esquecer a missa de sétimo dia, etecetera coisa e tal?!
Que a história é trágica, lá isso é... contudo, rendeu uma excelente crônica, hem? Parabéns!
(... ou deveria dizer "meus pêsames!?")
Ora bolas! Achas mesmo que camisa e gravata é suicídio?..cá para mim gosto...(de camisa com gravata, de suicídio não que até arrepia!)
Juro que pensei que a camisa tinha sido vestida por outro e que esse é que era o pai!... Caramba, onde é que anda a minha cabeça?!... Um simples suicídio e eu vejo sarilhos!... :(
Nem comento!!! Tá simplesmente excelente!! Pode ser que um dia ainda resuscite para mais alguma história! Ao fim ao cabo é a tua camisa virtual, do mundo dos sonhos, dos contos de fadas, pois estão-lhe associadas histórias de encantar (casamento, filho...)! Se a camisa já tivesse sido usada perdia a beleza, a magia, a fantasia...
Abraço mixed by Jameson!
Legível estou mesmo burrinha...li e reli o teu comentário nas ASAS e nada...não chego lá...bolas...até me sinto mal.Ah! e tb reli o Alvaro.Nada! Estou de todo, é o que é.Podes trocar por miúdos?É que devo ter para lá uma gaffe do tamanho dos teus elefantes e não dou com ela!
rs*! Nem pensar nisso!!! Fazem parte da estética e não seria ético!!!!! Muito obrigada pelo reparo.Vou apagar o duplo, isso sim!
Para universalista:
A definição de "ocasião especial" depende da importância que damos a um determinado facto e que para o "vizinho do lado" pode não ter importância absolutamente nenhuma.
Porque é também na "diferença" que cada um de nós temos de interpretar e decidir sobre um dado facto, que poderemos guardá-lo para amanhã... ou não.
Para pé:
É uma outra forma de dar a volta à questão...
Para segurademim:
Bom... eu não tenho a intenção de revelar aspectos da minha vida particular à pala dos textos que aqui edito, no entanto abro uma excepção para o vestuário acabado de comprar porque sigo religiosamente um método de primeira utilização (vulgo estreia) para os diversos artigos adquiridos.
Assim, no que toca aos sapatos e às gravatas, por norma, saio já com os ditos calçados (e com elas -as gravatas, colocadas) da loja. Se isto estiver a ser muito confuso, avisa que eu escrevo mais devagar...
Fato, só estreio à segunda-feira imediata ao dia da aquisição. Se esse dia coincidir com uma segunda-feira, visto-o na terça-feira seguinte.
Camisas, às quintas e depois de levadas.
Peúgas, já há uns anos que não compro. Duram-me muito tempo porque... ando quase sempre descalço; faz bem à circulação.
E ficamos por aqui.
Para i&c:
Já não havia nada a fazer... lamentavelmente.
Mas... aqui para nós e que eu não te pareça pessoa de maus fígados*: foi melhor assim, porque ela já tinha passado de moda, percebes? Vesti-la, vesti-a, mas... lá tinha de ouvir alguns piropos dos meus colegas e amigos, do género «Tanto fizeste que lá conseguiste que o teu avô te desse a camisa que lhe ofereceram quando foi assentar praça!»
* Nem do pâncreas nem dos rins...
Para black rider:
Chegaste a conhecê-la?!
Para armando ésse:
Assim não vale! Adivinhaste a resposta que eu ia dar no comentário anterior...
Abraço.
Para jpd:
Se soubesses a história desse quadro!
Comprei-o por um preço muito acessível a um antiquário que me garantiu ser uma obra do Francis Bacon. O sujeito a pensar que me fazia passar por parvo!
Porque na realidade, percebi logo que a tela era um autêntico Edward Hopper. É uma coisa que se topa logo à vista desarmada, pelo pormenor da camisa não ter bolso... Só do Hopper...
Como o Bacon na altura não estava bem cotado em Portugal, ganhei umas massas valentes neste negócio...
Abração
Oh bolas! Pobre camisa!
(Gostei muito!)
Para algodão:
É efectivamente um mau hábito que já faz parte do universo humano e... de que maneira!
Isso já não sei; mas que lhe fiz um funeral com pompa e circunstância, lá isso fiz.
Para salsolakali:
Teve todas as facilidades deste mundo para escolher o fim.
Até por falta de ar...que estar uns anos valentes fechada numa gaveta...
Por vezes dá-me a veneta e tenho destes comportamentos. Mas logo a seguir pratico uma boa acção...
BJ
Para batista filho:
Pois claro que providenciei. Um funeral digno de uma camisa de eleição... pelo menos quando a adquiri...
É. As histórias trágicas são das que rendem mais... até na vida real. A televisão oficial portuguesa entrevistou-me aquando do ocorrido e a reporter terminou assim o seu trabalho: «Afinal apenas morreu uma camisa. Joana Gostosa e José dos Prazeres em Paço d´Arcos, RTP1»
Se tivesse ardido uma fábrica de camisas, teria muito mais impacto nas audiências...)
Abraço
Para manhã:
Também não desprezo, embora cada vez mais a casual wear seja a preferida... e tenho uma boa colecção delas (gravatas).
Não são de estranhar os arrepios; o tempo vai ficando frio...
Para sotavento:
Também andas baralhada?; então, olha, já somos dois! Quando vi a camisa naquele estado, fui logo saber do resto do vestuário... Não fosse ter acontecido um suicídio em massa.
Já viste bem em tudo que é "perdidos & achados"?!
Para bacardiman aka spiritman:
Apanhaste o espírito da coisa, pois era efectivamente uma camisa de... fantasia.
E assim sendo, o suicídio, só pode ser virtual. Para um regresso em grande, género THE SHIRT, Part two.
Abraço.
Para i&c:
Tás nada! Acontece aos melhores... e já deve estar tudo nos conformes.
Para manuel:
Exacto. Aquelas das varas cíveis, não é?!
E às vezes há mais que onze; são às dúzias...
Dessas não uso, não.
Abraços.
Para concha:
Não fiques triste. Era tudo a fingir. Olha para ela toda bem disposta no cabide...
Para i&c:
Vais apagar o duplo?!. Olha que eu acho que o actor principal não quer fazer cenas arriscadas...
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