DEIXAR CORRER o MARFIM
O Verão foi-se e o Outono instalou-se definitivamente. Mas ele continuou a teimar que ali é que se sentia como peixe na água?!. Recebia a visita de muitos curiosos (testemunhadas pelas pegadas deixadas na areia e visíveis na imagem) surpreendidos por sujeito tão obstinado e que abdicava do conforto morno do lar ou da sala climatizada de um cinema. Nem a chegada da chuva o convenceu a abandonar o areal. Chovia, metia-se na água; parava de chover estendia-se na toalha aguardando que algum fugaz raio de sol o viesse aquecer. Se o tempo arrefecia, marchava doidamente até transpirar. Conheci-o num dos meus passeios matinais deste início de Novembro, alertado pela voz de uma criança que gritava para a mulher que a segurava pela mão «Avó! está ali em baixo um homem em cuecas!»
Não era -como imaginei a princípio, um daquelas tarados do Guiness. Apesar de reservado, contou-me o essencial da sua história. Funcionário público, aborrecia-se de morte com a rotina profissional, de tal sorte, que o seu sonho sempre foi o de ter umas férias grandes ( pronunciava GRANDES assim mesmo... ), daquelas que só acabassem quando... enjoasse. Porque o vencimento não era elástico, habituou-se a passar o mezinho de descanso na Caparica. Este ano decidiu alargar as férias não se apresentando ao serviço em Setembro. Surpreendido, perguntei-lhe se não tinha receio de perder o emprego -se é que já não o tinha perdido... Sorriu mansamente e respondeu-me «Neste país, tenho visto toda a gente a fazer o que lhe dá na cabeça. Porque não hei-de experimentar também?! Está a arrefecer um pouco. Vou correr um pedaço e... deixar correr o marfim; até aquecer... »
San Sebastian, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.
35 Comments:
Esse tipo é o meu sonho!... Mas porque é que nao faço como ele?... Legível, encontraste a minha alma-gémea!
(... mas eu escolhia outra praia!... decadência por decadência, antes preferia decair numa praia com areia mais... e mar mais... e colchões verdes menos... bem, se calhar não é a minha alma-gémea!...)
É veemente a necessidade de evasão.
O problema é que cada vez mais, por força das preocupações do quotidiano e da raiva ouvir da boca do min. da economia a «crise está ultrapassada»... só apetece mesmo é desligar!
Fina ironia, Alberto.
Excelente.
Um abraço
"deixar correr o marfim" - não conhecia tal expressão, mas o texto, o texto!... "tá" demais, meu amigo!
em tempo: "tô" em novo endereço.
Bob - era esse o seu nome artístico - nunca mais tinha sido o mesmo depois das férias na Jamaica, no verão de 96.
O regresso à vidinha de sempre - o formulário 125-A, o selo branco, o carimbo, o ir a despacho com o chefe da repartição, o guichê sempre cheio de gente mal disposta para atender - tinha sido um martírio.
Salvou-o o saquinho que trouxe de Kingston, embrulhado numa toalha de praia, cheio de sementes.
Verdade que a conta de electricidade nunca mais tinha sido a mesma que, para criar as plantas dentro de casa, tem de haver calor, mas isso de nada importava perante o prazer que lhe dava disfrutar da combustão herbácea.
Agora, tantos anos depois, tudo era mais relativo, tudo parecia importar menos. Tinha mandado o chefe à fava e carimbado a testa de um utente mais chato. Meteu baixa... ou teriam sido férias? Cada vez mais tinha dificuldade em se lembrar do que fazia. De que importava isso, se podia ir para a praia apanhar o tempo que fizesse, fosse chuva, sol ou neblina. E estava numa forma excelente, de tanto correr na praia.
Bob procurou debaixo da toalha e tirou um walkman de primeira geração. Lá dentro, um dos seus bens mais precisos, juntamente com a toalha de praia e o colchão cor de alvaláxia: a cassete BASF com os maiores êxitos do George Michael e dos Wham.
é preciosos...
Haja alguém que faça o que lhe dá na "real gana"! Quanto ao resto, lá teremos de prescindir dos banhos de chuva na Caparica. Quoi dire? É mais um fruto da Legiveleira (árvore que dá uns frutos de humor mordaz e de sabor agridoce.
Mas por acaso fazemos nós outra coisa se não deixar correr o marfim?
Um abraço. Augusto
Ai, Legível, até doem as palavras...
Essa é exactamente a minha vontade! (menos ir para a praia apanhar chuva, simplesmente fazer o que dá na real gana).
Mas fui tão martelada com o dever dever dever dever que conseguia lá eu fazer isso de mente descansada.
(devo ter nascido parva, que se há-de fazer)
O máximo que faço é não ver tv para tentar não ver algumas pessoas que se dizem eleitos pelo povo (lembro-me de uma votação com um certo sentido...) a dizerem que estamos a recuperar (não sei do quê, alguém depois me explicará)
gostei do que li mais uma vez
boa tarde
*ps: onde anda a inblueys?
Legível: será possível seres mais idade do que eu? desculpa semelhante pergunta...
tu vê lá, tenho medo de filmes de terror!!!!!
Que Loucura saudável...
Também me apetecia...!
Até outra magia...
a humanidade vive cada vez mais contra natura...
Muto bem, sim senhor.
Beijinho
Cada vez gosto mais de te ler. Cada vez gosto mais do que dizes e do que deixas por dizer para que o leitor te adivinhe , ou não!
É encantador! O conteudo tocante e a escrita de verdadeira qualidade.
Parabéns!
Isabel
Quem me dera a mim! :)
E repara que audaz esse senhor é! nem um iglo tem! é assim ao relento e tudo!! :) é à macho! rijo!
looolll
muito giro! :)
bjs bom fim de semana!
por fazer o que me dá na cabeça.. é que acabei atchiiiiimmmm! ;)
Ora aí está alguém que tem coragem de ir atrás do seu sonho. Deixa correr o marfim até aquecer.
Bom fim de semana
marinheiroaguadoce a navegar
... A imaginação fértil de uma criança na pena de um adulto, modelada por um humor original que já vou conhecendo como teu. Sempre uma delícia! :-)
E essa vontade, trazêmo-la sim, amordaçada e silenciada a cada final de verão, guardada na gaveta dos processos arquivados pela razão... Continuar a caminhar, evadidos pelo areal e de rosto ao sol, ao invés de tomar o caminho de sempre que é igual a tudo, sabe a pouco ou não vale nada.
Bela peça! Um abraço*
Caro Legível
Confesse lá que esta fotografia foi tirada de um ultraleve (ou será ultra-leve?) :)) que voava razando a areia e o sujeito encolheu-se todo só de ver a manobra! E pensou que talvez não fosse má ideia retornar ao conforto do lar. Estava ele encetando estes pensamentos assim como o resto das coisas espalhadas pela areia (sim, porque depois de tanto tempo na Caparica tem esse sentimento de que todo o espaço é dele). Quando de repente... (catrapuzzzzz - ok, este não é o som propriamente de um ultraleve a despenhar-se tranquilamente na areia, mas enfim...foi o que se pode arranjar!) e lá apareceu o aviador à porta da avioneta (enquanto o homem estacou de queixo caído e sem saber como justificar a sua tardia presença no areal dourado a quem ele supunha ser o chefe da repartição). Sim! porque de tão habituado a seguir que nem carneirinho amestrado, faltava-lhe lata para se desenvencilhar de tal sarilho. Mas tudo acabou em bem porque o tal aviador não era nada mais nada menos que o Legível no seu passeio matinal. Prontus :)
Tenha um excelente fim de semana
E nós, os “normais”, que temos a relutância do hábito disciplinador, quantas vezes não nos apeteceu deixar correr o marfim e mandar tudo às ortigas? O problema, esse, é nas nossas cabeças um passo gigante e intransponível devido às responsabilidades criadas e quantas vezes sofridamente vividas.
A “coragem” ou a “desresponsabilidade” desse artista inconformado é de admirar.
Excelente história e muito bem escrita.
Abraço.
Quando se cansou de correr, achou que devia voltar à Repartição. Não para voltar a trabalhar, claro. É que tinha deixado um caso por resolver. Há quinze anos que carimbava certidões. O carimbo era enorme, rectangular, e pintava letras nos documentos. Era um dos seus trabalhos favoritos. Carimbava com estrondo, com precisão, com regularidade. Um carimbador exeeeemplaaar. Quantas carimbadelas teria aposto? (Pensava enquanto se dirigia para o local da acção) Cinquenta mil? Duzentas mil? Agora isso não interessava. O problema é que nunca tinha reparado no que dizia o carimbo. Rotinas, os Senhores entendem?
Sem proferir bom-dia, agarrou o carimbo pelo cabo, virou para si o rectângulo tinto de azul ferrete e leu, com dificuldade:
MIFRAM O RERROC AXIED
Boa tarde, caríssimo Legível.
Este é o homem dos meus sonhos! Também me apetece fazer como ele.
Deixo-te um beijinho e desejo-te um bom fim de semana.
Bom fim de semana, amigo!
Grata pelo poema, és figura de capa na Casa:))
olha que lês os pensamentos de muitos, embora tristemente, fazer o que apetece consciente não é muito bom, mas enfim.
1 beijinho
oh! pá atão e na é que me tem apetecido tal qual isso que tão descrito fazes! é que com este abafão que por aqui tem andado nem a refresca e como me tem apatecido desetar ali para a praia grande que de noite a cacimba qualquer guarda chuva apara e de dia, é o que ele faz, mete-se na água. Bela vida, podes crer!
correctando: ...que tem andado, nem a chuva a refresca...
... em mim, continua instalado o verão, incrustrados os rios, os mares, as cores, as montanhas
o marfim? há-de correr! é preciso dar tempo ao tempo...
a experiência mais próxima foi o camping apenas um tecido a separar o corpo da natureza... agora a dúvida - será que ainda consigo deitar-me no chão???? terra é diferente de areia, não é???
já sei... vais responder: monta a rede!!!!! rsrsrsrs
bom domingo
:D
já vejo a cara de espanto do empregado "pasteis de nata menina, mas mas tem a certeza ...!?!?
eheheheee
jinhos bom domingo (aquilo da letra n foi nada bonito, já n ficas com a canela! ;))
brilhante! quero ir passear um dia destes, de madrugada consigo pela mão e ouvi-lo a si, contar-me histórias (ou estórias)...
Gostei muito. Desta vez, não vou pegar noutros conteúdos do texto sobre desemprego e o país que não presta p'ra nada e tec, e vou deixar-me embalar apenas pela doçura e fantasia do seu ohar. Beijos. Até breve. azul.
Por isso é que adiaram mais uma vez a entrega daquela certidão que eu pedi há mais de um mês!!!
Beijo
«Neste país, tenho visto toda a gente a fazer o que lhe dá na cabeça. Porque não hei-de experimentar também?! Está a arrefecer um pouco. Vou correr um pedaço e... deixar correr o marfim; até aquecer... »
Quem me daria a mim, deixar correr o marfim...
Excelente.
Um abraço ;)
pois... bora lá correr :)
um beijo
Seria bom, mas...
Planta-se à beira-mar para fugir ao ramerrão?! Um acto corajoso ou uma contradição? A rotina também está ali, encoberta no areal, à espera de apanhar boleia quando o marfim for a passar. É impossível extingui-la. Conseguimos enganá-la de vez em quando, mas ela é uma mafiosa. Há-de ir atrás de nós até ao fim do mundo, fique ele onde ficar.
:))
Boa tarde!
Genial!!!!!!!!!!!!
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