Wednesday, September 29, 2010

TRANSPARÊNCIAS




Podemos assobiar para o lado a Portuguesa com aquele ar de quem não parte um prato da Vista Alegre, sem que um familiar mais prevenido não corra a proteger o louceiro mais à mão de semear. Podemos jurar a pés juntos que não acreditamos em milagres terrenos e celestiais ou que alguma vez na vida uma cigana nos leu a sina na palma da nossa mão embora tenhamos uma réstea de esperança de testemunhar em vida, a chegada do primeiro grupo de turistas de Neptuno ao Aeroporto da Portela. Podemos garantir comovidos, que não há amor como o primeiro, sabendo no entanto que o coração tem razões (?) que a razão desconhece, dando-nos a conhecer outros amores seguintes e bem diversos. Podemos chorar baba e ranho, confessando faltas de escassa monta, quando nos aprendemos capazes de cometer pecados impossíveis de descrever aqui por absoluta falta de espaço. Podemos enfim, fazer uma pausa nas nossas anónimas vidas - que dariam um filme ou um livro (pelo menos) e beber deliciados uma cerveja, duas cervejas, três cervejas... Por volta da décima, tudo se torna mais claro - diria mesmo transparente: tal como a Atlântida, a "provavelmente melhor cidade do mundo" é tragada por um mar em fermentação, publicitado pelas necessidades do mercado cervejeiro. E de nós o que será feito? Vamos na enxurrada? Não. Somos salvos por milhares de grades-balsas da "provavelmente melhor cerveja do mundo" e transportados ilesos para o dia seguinte. Com um valente dor de cabeça.
2010. Texto e fotos de Alberto Oliveira.

Tuesday, September 21, 2010

PERIGO LATENTE NÃO DESCANSA A GENTE









Era reconhecido pelo exagero tão comum a alguns caçadores e pescadores. Não que se dedicasse a alguma destas lúdicas actividades. Pelo contrário, criticava com a veemência que lhe era própria, os que desatavam aos tiros em todas as direcções assim que abria a época venatória ou quem, não sabendo mais o que fazer, desassossegasse os desgraçados peixes engodados por traiçoeiros iscos. Os seus excessos não tinham demarcação visível, porque na abrangência do quotidiano se situavam . Antes de partir de férias, reuniu amigos e conhecidos dando a saber que desta vez viajaria não apenas para recarregar baterias de um ano de exaustivo labor profissional; iria ao encontro do perigo real, palpável e - quem sabe, mortal. Anunciada assim a coisa, onde não se conseguia distinguir no rosto fechado qualquer indício de teatralidade, conseguiu despertar na audiência-de-pé-atrás, a atenção que desejava. Quando se conseguiu fazer ouvir (depois do primeiro impacto-surpresa as perguntas sarcásticas de mãos dadas com questões hilariantes foram mais que muitas) declarou «Decerto que já tiveram notícia - fosse pelos jornais ou pelo Discovery Channel, daquela região na Europa Central onde os ursos famintos descem às cidades à procura de alimento. Pois bem, vou encontrar-me com eles.». Dito isto, sem mais delongas, partiu. Regressou quinze dias depois, ileso e de boas cores. Reuniu novamente amigos e conhecidos mas antes que usasse da palavra ouviu-se uma voz «Não digas nada; foste lá, fazer figura d´urso!»

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, September 13, 2010

OS CAVALOS A CORRER, AS MENINAS...












Onde diabo meteram os cavalos na carripana? perguntou esbodegado Ismael Serôdio a um fantasioso interlocutor? Dia aziago este em que se tinha aventurado a fazer negócio com gente que nunca tinha visto mais gorda que lhe tinha prometido um número exagerado (ou teria ouvido mal?) de equídeos na compra da viatura e agora depois de tanto procurar nem um para amostra. Na escola em frente as raparigas em coro
Os cavalos a correr as meninas a aprender
e ele que nunca mais aprendia a não confiar no primeiro mânfio que lhe surgia pela frente a prometer-lhe mundos e fundos que se estava mesmo a ver não terem cavalos suficientes para percorrrem um míseros cinquenta quilómetros.
qual será a mais bonita que se há-de esconder?
quais cavalos qual quê?! burro, mil vezes burro, isso sim! arrepelava-se Ismael, dando voltas e revoltas aos olhos piscos no interior da viatura. E quanto mais se curvava mais os calções deixavam a descoberto um vertical rasgo carnal. «Ó pai! resguarde-se do sol que está tão forte, ou pelo menos, vista uma t-shirt mais comprida.» benzeu-se Maria do Rosário. «Mas filha, e o raio dos cavalos que não me aparecem?» teimou Ismael. «Ora. Deixe esses cavalos sossegados e vá ter com os outros. Que "... são aqueles que fazem sombra no mar"» aconselhou a jovem. Ele não resistiu mais. Na Caparica, mergulhou os pés na água ainda tépida do Atlântico. Num grupo de nuvens, desenhavam-se na perfeição meia dúzia de cavalos de corrida dos UHF, fazendo sombra aos do ALA. Com a água a cobrir-lhe a cabeça, Ismael Serôdio nunca chegou a saber qual deles lhe deu um valente coice no pescoço. Andou pelo menos cinco meses sem conseguir calçar peúgas.

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.






Saturday, September 04, 2010

O GOSTO PELO LEITE











Sou tarado por leite. Eu explico. Quando em criança me fizeram a pergunta sacramental «O que gostarias de ser quando fores grande?» respondi candidamente «Pobrezinho!» . O meu tio Apolinário exclamou de imediato «O miudo é louco!». O meu pai mais comedido e científico, inquiriu «O que te faz despontar esse desejo?». Retorqui que «Vejo todos os dias, na rua da Graça, um pobrezinho de mão estendida e sempre de sorriso nos lábios; logo, deve ter uma existência feliz que é o que todos nós pretendemos, não é verdade?». O meu pai depois de um longo silêncio disse para o irmão «Tens razão Apolinário, o rapaz é completamente chanfrado! O pobre de que fala é o Gaspar, que foi corrido do Júlio de Matos por andar sempre a rir dos seus colegas doentes.». Assim, aos cinco anos, expulsaram-me de casa. «Vai ser maluco para outra freguesia!» gritaram em uníssono todos os membros da família que vieram à porta certificando-se que eu desaparecia dos seus horizontes mais próximos. Uma mulher grande, robusta e de enormes seios, olhou com pena para mim, sentado no chão frio da rua pedonal e inclinando-se perguntou com voz de veludo «O que tu queres meu menino?», «Quero mamar.», respondi eu. Foi assim que tudo começou.
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O texto que leram acima, foi publicado num blogue colectivo há cerca de quatro anos sob o título "Sem Imagem Porque Não Sou Fotogénico". Volto a editá-lo hoje por dois motivos. Um porque provavelmente a maioria dos meus simpáticos leitores nunca lhe puseram a vista em cima e têm assim oportunidade de constatar que nem sempre fiz da ironia ou do riso fácil uma bandeira enquanto escriba na blogo-esfera. O outro, porque finalmente consegui fazer uma foto que se ajusta, no mínimo, ao referido relato. Sendo óbvio que a imagem não me revela enquanto autor (nestes anos a má relação que as máquinas fotográficas têm com o meu rosto ou vice-versa, mantém-se) e uma vaca de corpo inteiro é melhor que nada. Pudicamente, o animal apenas me pediu para não lhe fotografar as tetas. Assim fiz.
2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, September 01, 2010

ÁGUA PURA













Há sempre um momento que não nos escapa de entre tantos outros momentos que nos passam ao lado. Este foi um deles e tão rico de sintonia que ele decidiu não manchá-lo com as habituais palavras carregadas de ironia ou com finais insólitos. O puto merecia pois seguiu as suas instruções à risca de modo a que a foto ficasse a lindeza que se observa.
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Isto foi antes da polícia aparecer em cena, exigir que se identificasse e lhe passasse para as unhas o cartão da câmera fotográfica. Entretido com as macaquices que fazia à criança nem lhe passou pela cabeça que a mãe - não revelando quaisquer indicios de pânico, chamasse a bófia através do telemóvel. Felizmente que acabou tudo em bem: amável e graciosamente transportaram-no até à fronteira e entre adeuses e sorrisos garantiram-lhe uns anos na choça se ousasse voltar. O casal que se encontra num plano mais afastado e com quem travou conhecimento durante a viagem tornando esta menos monótona por via de conversa animada e agradável, afirmou às autoridades no local que "lhes pareceu suspeita a sua atitude por - assim que saímos do aeroporto, ele ter tentado (com insistência) meter conversa com um cachorro local, no idioma de Camões... "

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.