Wednesday, April 21, 2010

NAQUELA MANHÃ ACONTECEU UMA NUVEM
















De muito cedo - por via das primeiras sensações emanadas das papilas gustativas, que Gustavo dos Divinos Paladares (filho de pais ligados ao negócio da restauração) detestou castanhas. Tinha bem presente o momento, que aconteceu quando, ainda menino, a sua tia Cesaltina das Doces Receitas lhe meteu uma na boca, descascada e crua. Nunca mais esqueceu o sabor acre da segunda pele daquele fruto, jurando (aos cinco anos já demonstrava firmes convicções) nunca mais lhes tocar. Apesar das constantes solicitações e desafios (no lombo de porco assado e acompanhado pelas ditas, pedia "sem castanhas e mais batatas") e admitindo que nos dias mais frios do ano, os carrinhos fumegantes contribuiam para dar um certo colorido às zonas pedonais urbanas, chegou aos dias de hoje mantendo a promessa. Naquela manhã cinzenta e a adivinhar chuva, na praça daquela cidade apenas três pessoas: a vendedora dando as costas ao fotógrafo na faina da assadura, a menina sentada no banco e baixando o olhar ao cenário que a imagem nos revela, e ele, convicto que tinha ali alguém do mesmo sentir e paladar que o seu. Por isso não se conteve "então pelos vistos, também os teus olhos não sorriem às castanhas?!" A criança ergueu a cabeça e não se mostrou surpreendia pela interpelação não se esquecendo contudo, dos avisos paternos de não alimentar conversas com homens com castanhas a estalar nos bolsos... o que não era o caso. "Não senhor. Estou apenas à espera que a nuvem que sái da caçarola aumente de tamanho e não permita que os pombos façam os voos programados e me caguem a roupa como é habitual."
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Nota: Não pretendendo enganar ninguém, e antecipando-se a algumas vozes que porventura afirmem a pés juntos que "há mais gente no cenário", o autor confirma o que deixou expresso no texto e acrescenta que não será a primeira vez nem a última que alguns figurantes abandonam (sem a devida permissão) outros textos que já são passado e se passeiam por aqueles que o autor trata no presente. O assunto está a decorrer nos canais de justiça competentes e será tratado com a celeridade do costume.

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, April 13, 2010

O EQUÍVOCO












Não faço a mínima ideia com quem falava ao telefone móvel. Mas era notório o seu nervosismo pelo caminhar descontrolado - em passos rápidos e curtos umas vezes, outras em passadas largas, cadenciadas de marcha fúnebre e tão depressa rodava sobre si próprio ora na direcção de Cascais como se voltava para as bandas de Vila Franca de Xira, gesticulando tão bravamente como qualquer italiano que se preza, de tal modo que, de quando em vez, mudava o braço que sustentava o telefone para dar descanso ao outro. Acrescido a isto, o registo verbal entrecortado e ríspido, não enganava ninguém: estava fulo e não seria difícil adivinhar que o seu interlocutor se limitava a ouvi-lo. Dizia estar "... preocupado. As informações que me prestaram - e que considerei de fonte fidedigna, não correspondem à verdade pois do Homem Diferente e do Cão Incomum nem sombra ou rasto. Daqui, apenas vejo o catamaran do Montijo a fazer a aproximação ao cais do Cais do Sodré. Até de dois pombos-figurantes do cenário que me pintaram, nem penas. Vá lá confiarmos em alguém... " . Fiz questão de aqui deixar parte das falas deste personagem, para que mais tarde não possa argumentar que estas letras não passaram de pura ilusão de óptica. E porque sou um cidadão cauteloso (o que é literalmente diferente de desconfiar das minhas faculdades mentais... ), voltei aos dois textos anteriores. O Homem e o Cão lá estavam; mas agora juntos, a partilharem histórias de vidas e solidões sofridas. Juro que a emoção foi mais forte que eu: entrei no restaurante mais próximo e pedi uma dose de bacalhau cozido com todos...

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, April 06, 2010

UM CÃO NA CIDADE












Indiferente ao Homem Diferente o Cão Incomum dobrou a esquina do velho imóvel com um abanar incrédulo de orelhas e o rabo alçado em curva, qual periscópio diverso de submersível imerso. De facto, o seu olfacto apurado e rotinado para reconhecer a passagem de perna levantada de um seu igual - estranhamente e ao longo daquelas paredes, não detectou qualquer sinal excrementício canino. Lisboa já não era o que fôra, congeminou desalentado. Desrespeitosos, dois pombos voltaram-lhe os rabos à sua passagem, dirigindo olhares e atenções para a atracação do cacilheiro Madragoa a um modernizado cais sem colunas descobertas. "... ai Lisboa, quem te dera estar segura que o teu canto é sem mistura... " rezava a letra dum fado que, em musical lamento, saía porta fora dum restaurante e ia afogar as mágoas nas águas cinzentas do Tejo logo ali, à mão de semear. Sendo verdade que um cão não tem memória para estrofes completas, complexas, passadistas e apelando ao drama, é bom recordar que este era um Cão Incomum e dado às coisas do social e da cultura. Muitos outros, mais comuns, ficaram a dever-lhe o levantamento topográfico de cerca de dez mil wc´s-canídeos (bases de árvores, postes eléctricos, sinais de trânsito em altura, muros de quartéis e de repartições públicas) sitos nos bairros mais modestos da capital e um opúsculo poético (em homenagem aos cães mais desfavorecidos) glosando tácticas defensivas e manobras de diversão para escapar à feroz perseguição camarária em tempos idos e de revolta sentida no pelo. Um nó de emoção cresceu-lhe naquela parte do corpo que nunca tinha conhecido coleira, recordando a matilha amiga dessa época e que pouco a pouco, fôra desaparecendo sem deixar rasto. Agora era um cão só, numa cidade que lhe custava a reconhecer. Com a presteza que as patas ainda lhe permitiam, rumou a Alfama. O talho 45 na rua dos Remédios era o seu objectivo. Num dia de sorte, um empregado simpático, de farda branca salpicada de sangue, atirava-lhe um osso com imaginários resquícios de carne. Nos outros - que eram a maioria - desprevenido, sentia nas costelas escanzeladas, a biqueira do sapato do patrão do açougue.

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.