Friday, February 19, 2010

PAUSA PARA GEOMETRIZAR (9)







A chuva batia com violência nos vidros da janela rectangular, acompanhada de quando em vez por clarões dos quais, mesmo cerrando os olhos se percebia a sua presença fugaz, seguidos de estrondos metálicos repercutidos pelos céus, preenchidos de ameaçadoras e negras nuvens. Nas paredes nuas do quarto, as cores trágicas de um calendário com uma reprodução marinha e invernosa de Turner, ameaçando tempestade para breve, marcavam a excepção à regra, quebrando a monotonia do branco esmaecido da pintura que já teria conhecido melhores tempos. Aos dias do mês de Janeiro, tinha-lhes posto fim assinalando-os com uma linha em diagonal bem visível e os de Fevereiro iam pelo mesmo caminho, mas desta vez com um círculo à volta dos respectivos dígitos. Para Março, havia pensado que seria de boa política representativa, a vez dos triângulos. Em Abril, talvez se decidisse pelos losangos, voltaria às linhas em Maio - duas paralelas - e a partir desse mês retiraria o calendário da parede, substituindo-o por um outro - desta vez a imagem de uma obra de Van Gogh - com girassóis enormes e o traço do horizonte alaranjado e escaldante. Nesse, e na esperança vã de os dias renderem muito mais que as vinte e quatro horas da praxe, não assinalaria o fim de mais um dia com símbolos planos geométricos. Por essa altura, dedicar-se-ia aos sólidos: cilíndricas e doces tortas à base de ovos e cones de baunilha atestados de gelado de natas e tiramissú .

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, February 12, 2010

PAUSA PARA REPRESENTAR (8)









O desespero
que me perpassa a mente
não dói nem dilacera
e quase não se sente.
desespero tão só à espera
de triviais acasos do destino
de cenas onde pontua o desatino.
de resto nada de dramático
é mais pelo ofício de fingir tanto
pelo pulsar compulsivo e errático
que de mim não faço espanto.
e desespero.
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O autor devia perceber que não pode, nem deve! caminhar impune e rasando, o fio da navalha. Há desafios que se tornam perigosos, não só pela transgressão mas sobretudo pela teimosia. Afrontar estados de alma, nunca fez bem ao intelecto e muito menos ao físico e, por norma, a factura é apresentada quando menos se espera. Avisado destas elementares regras de bem viver, o autor ao fazer-se de desentendido, parece estar a procurar que lhe façam a cama.
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E tu? hoje já paraste uns segundos e te questionaste?! Já perguntaste a ti mesmo o que andas a fazer na blogo-esfera? Não?? Lindo!! Afinal não sou só eu...

2010. Poema texto e foto de Alberto Oliveira.


Friday, February 05, 2010

PAUSA PARA SURREALIZAR (7)













Grácil, Antonieta cirandava pela esplanada atenta aos clientes que chegavam, às mesas que vagavam e aos pedidos que lhe solicitavam. Os frequentadores mais antigos eram unânimes em elogios a seu respeito "Aquilo é que é uma cabeça! não precisa de apontar nada... " afirmavam incrédulos aqueles que dificilmente se recordariam do que tinham almoçado no dia anterior. "É uma profissional de mão-cheia!" sentenciavam outros, desatentos a trabalhadores de mãos vazias de nada "E não se vê um grão de sujidade numa unha nem um cabelo caído sobre os ombros." ajudavam à festa os defensores acérrimos da higiene no trabalho de restauração. Os que vinham pela primeira vez, não queriam acreditar que poucos segundos depois de se sentarem, uma voz amabilíssima vinda do interior daquele vestido branco de outras épocas, os interpelasse «Sejam bem-vindos. Não se importam de me dizer o que vão desejar?» e dois minutos depois o pedido estava na mesa. O seu nome atravessou fronteiras e as artes do espectáculo contribuiram para esse reconhecimento público. Alicia Keys dedicou-lhe uma canção (Boy Meets Girl no Head) e Scorsese, inspiradíssimo, imortalizou-a no filme "Antonieta doesn´t live here anymore" ("Antonieta despejada!" seria o título em português-de-Portugal). De tal modo que um anónimo turista francês, curioso por conhecer ao vivo Antonieta não ficou desiludido «Bienvenue, monsieur! Qu´est-ce que tu bois? Café, eau ou du vin rouge?» não se atrapalhou ela que não tinha um dedo que adivinhava a origem dos novos clientes mas deitava-se a fazê-lo. Ele sorriu e disse para com os botões do seu blaser "Só pode ser parente da outra! Apesar de não terem cabeça, dão sempre um ar da sua graça."

2010. Texto e foto de Alberto Oliveira.