Monday, December 28, 2009

PAUSA PARA MUDAR A PÁGINA (2)








Já nem se lembrava bem como tinha ido ali parar. Com uma cunha não devia ter sido de certeza que aquela actividade era desgraçadamente mal paga, terrivelmente monótona e, pior ainda, mentalmente desgastante porque sentia a existência avançar demasiado rápida, ao contrário dos seus desejos e de qualquer outro emprego em que nunca mais se vê chegar a hora do fim do dia de trabalho: a de vigiar e não permitir que os segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, daquele enorme relógio que tinha à sua guarda, não parassem na sua cadenciada e irritante marcha. Guardião do tempo que passava por ele, célere, na solidão de uma ocupação que mais ninguém queria, apenas podia ter olhos para aquela máquina infernal - inventada por um homem provavelmente insatisfeito por, em diversas ocasiões de desnorte, lhe terem atirado à cara "nem sabes a quantas andas!"- não tinha vida familiar, desconhecia que o primeiro-ministro detestava posições da oposição que se lhe opusessem, que o presidente da república não falava quando devia e quando devia calava-se (um bom exemplo para os caloteiros... ) que os jornais desportivos, desde a primeira jornada da liga portuguesa de futebol vaticinavam às claras a vitória dos da Luz enquanto piedosamente decretavam o apagão em Alvalade, que no caso Casa Pia, a tentação de puxar o autoclismo já tinha estado mais longe, que a cotação do robalo estava ao preço do ouro na Bolsa de Valores de Lisboa, enfim, de fonte segura, apenas uma coisa ele sabia: estava por um fio o ano de dois mil e nove. Deu a corda toda ao monstro dos ponteiros e telefonou para Isaurinda, o amor de toda a sua vida «Estou farto, demito-me! Dá corda aos sapatos e vem-me buscar. Mas não te atrases... »
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O autor garante que esta segunda pausa consecutiva, não reflecte menor empenho na continuação dos textos continuados de perseguidos e seguidores. Mas também admite que mais uma dúzia de pausas deste género, não ficariam a destoar neste espaço de fantasias diversas. Aproveita ainda para desejar a todos os seus leitores e amigos, as melhores saidas de 2009 e óptimas entradas em 2010.
2009. Texto, foto e desenho de Alberto Oliveira.

Monday, December 21, 2009

PAUSA PARA PUBLICIDADE (1)










Sabia que não devia abusar da cafeína mas uma vez por outra... Rasgou o invólucro do açúcar por metade do braço da mulher que o fitou com um meio sorriso analógico como se estivesse a posar para uma máquina fotográfica digital. Desviou os olhos dos dela e concentrou a sua atenção em mexer metodicamente o granulado doce no fundo da chávena - quase cheia com um líquido cuja cor pouco tinha a ver com a do café* - no sentido dos ponteiros do relógio, passavam precisamente vinte minutos das sete. Tão abstraido estava nesta operação, que o toque do telefone o sobressaltou. Atendeu contrariado e resmungou à pergunta da voz feminina «Não, o George Clooney não está nem nunca esteve neste número, mas asseguro-lhe que se anda à procura de uma prenda de natal com qualidade, está bem servida comigo.» Ia jurar que a mulher-açucarada lhe fez um sorriso de assentimento e isso reconfortou-o porque uma coisa eram as certezas que ele tinha sobre si mesmo, a outra, meros e mesquinhos retratos, definidos por gente roída de inveja.
* Desta vez, tinha sido pouco feliz com a selecção de cor da cartolina que recortou para representar a aromática infusão no interior da chávena.
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É certo e sabido, que chegada esta altura do ano, as personagens da história de perseguições e seguimentos argumentam hábitos consumistas difíceis de entender nos tempos que correm, refeições com familiares com quem têm relações cortadas durante o resto do ano e o envolvimento numa salada de tradições religiosas e pagãs para se baldarem à prestação do episódio do jantar a quatro. O autor nada pode fazer contra tal posição não vá alguma central sindical cair-lhe em cima, ser perseguido por um chefe de família furioso ou excomungado por um bispo mais radical. Por outro lado, fica com tempo para descalçar a bota dos seguimentos e perseguições e para desejar as melhores (ou possíveis) festas, a quem é das festas e aos que são mais dos beijos e abraços.

2009. Texto, montagem e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, December 13, 2009

HÁ MOURO NA COSTA (11)








Alípio foi o último personagem desta história a receber o e-mail-convite de Jesualdo. Não sabendo fazer outra coisa na vida a não ser perseguir pessoas, admitia - democraticamente - que também o perseguissem a ele. Nas acções de formação que frequentou, aprendeu que nunca seria um bom profissional se fosse assaltado mentalmente, uma única vez que fosse, pela "mania da perseguição". Perseguir pessoas era um trabalho, não um sintoma patológico. Daí que, encarava com a maior naturalidade a perseguição anual que o fisco lhe movia, a perseguição mensal do proprietário da casa onde vivia, a perseguição quotidiana da sua colega de profissão Dolores (uma valenciana perseguidora incansável, cheia de carnes e de vontade de conviver mais de perto com Alípio), enfim, a um cortejo cujo séquito de perseguidores (pela sua extensão) não vale a pena continuar a referir neste texto, se juntava agora Jesualdo - nome que nada lhe dizia - mas que tinha o bom-gosto de o convidar para jantar. Tal como precisava de conhecer os hábitos de quem perseguia, do mesmo modo procurava perceber os usos e costumes deste seu perseguidor. Sem dúvida que, também por isso, aceitaria o convite. Mas antes, havia que finalizar a perseguição por um dia, que lhe tinha sido encomendada por um sexagenário descontrolado , a uma mulher maneta, que supostamente teria deitado as mãos ao pescoço (e a outras partes do corpo) de uma jovem que se encontrava regular e amigavelmente com o seu cliente. Depois, deixaria para trás o seu disfarce de vendedor da revista Cais. Foi nesses preparos, que o autor destas linhas o encontrou na rua do Sol ao Rato.

Prossegue continuando.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, December 05, 2009

O TEMPO: SEM SOMBRA DE SOL (10)







Porque os tempos mandam apertar o cinto, Lídia aproveita-os o melhor possível: nos fins-de-semana, feriados, pontes, auto-estradas e viadutos, despe a pele profissional de técnica contabilística camarária a recibos verdes e ei-la a fazer mais uns euros, na honrada laboração de proporcionar uma refeição económica ao passeante mais desabonado, por via de apetitosos cachorros-quentes que ela prepara com esmero e cujo sucesso reside na cebola de Flandres. Aos turistas da estranja, vende hot-dogs e a reconversão nem lhe dá grande trabalho: basta trocar as posições entre o aquecimento e os cachorros e a coisa está pronta a sair. Hoje, sábado fartamente molhado, o autor foi encontrá-la num dos pisos da gare do Oriente lavada em lágrimas. Explicou que um cliente japonês tinha acabado de lhe fazer um escândalo, porque segundo ele, após ingerir um dos seus hot-dogs, foi hospitalizado com cortes profundos nos intestinos. Um ano depois e já restabelecido, confrontou Lídia «Cliente japonês não tel memólia culta: comel cacholo com folha de Flandles!» Mas a boa notícia é que recebeu um convite para jantar, do seu vereador Jesualdo e que a frase, aparentemente dúbia, de "ou comem todos ou... " não lhe suscita qualquer dúvida: ele vai recompensá-la pelo trabalho que ela teve em perseguir Eunice. Sem quaisquer resultados práticos, é verdade, mas para uma primeira vez, que mais se poderia exigir senão a perseguição pela perseguição? A competência chega com a prática e quem sabe se um destes dias não teremos Lídia a perseguir a sua sombra? «Aprende comigo.» orienta-a Jesualdo «Decerto não imaginas que comecei a despachar, com a naturalidade com que despacho hoje... Vê bem que já nem preciso de assinar o que leio!» Também ela tinha de se despachar para responder ao convite expresso no e-mail: afirmativamente, claro.
A seguir: a continuação.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.