Monday, April 27, 2009

CLARA BÓIA









Pergunto a Clara, se quando desce na vida, esses reveses podem ser explicados com a claridade que exigimos a nós próprios, das vezes que nos propomos fazer a contabilidade da nossa existência. Ela responde sem hesitação, que não. Porque crê que existe uma qualquer força desconhecida que faz com que os azares e contrariedades que lhe batem à porta se multipliquem sem intervalos. E isso, acrescenta, não tem explicação lógica, adiantando entretanto que de supersticiosa não tem nada. «Agora, por exemplo, estou no "ciclo da escada rolante". Esteja com atenção e veja o que vai acontecer de seguida. Vou ser engolida por uma medonha negritude. Fui ou não fui?! E no fim da escadaria apenas não torci um pé porque não calhou. Certo? E o combóio que pretendia apanhar, enh?! já se foi e só daqui a três longos minutos chega outro com tanta gente, que provavelmente não consigo lugar sentada. O que me diz a isto? E porque vou chegar atrasada ao serviço, espera-me um sermão dos antigos do meu chefe. Mas hoje não estou para o ouvir e vou voltar para casa. O meu marido - que está com baixa médica há uns tempos largos, quando me vir chegar exclama "Desta vez é que foste despedida! Mas já que cá estás, prepara-me o pequeno-almoço que não me importo de o comer na cama." Entre o sermão do meu chefe e o pequeno-almoço do meu marido, opto pela escada rolante, percebe? Mas tudo isto começou tinha eu os meus três anos. A banhos, numa das praias da Costa da Caparica, o meu pai deixou de me segurar por uns momentos e, voltando-se para a minha mãe, gritou "A Clara bóia!!", enquanto eu, totalmente submersa, era invadida por uma escuridão assustadora (nunca consegui abrir os olhos sob a água) provava o sabor do sal Atlantico pela primeira vez e os pés de um nadador de domingo só não me acertaram por puro acaso.»
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, April 19, 2009

O ATALHO










"Quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos." dizia a minha avó de quem herdei o prazer de dizer coisas que tanto podem pretender ter algum significado social ou que apenas justificam o acto de substituir silêncios mais ou menos prolongados, quando a oralidade resvala para níveis deficitários que não fazem o meu género. Reconheço que tal gosto tem contrariedades, que no mínimo serei reconhecido por "fala-barato" (entendo perfeitamente o olhar de comiseração de um qualquer ouvinte que quer dizer o mesmo que «Este fulano está nas suas sete quintas: a encher chouriços.») e podem atingir a ofensa intelectual (a mim e ao poeta) com a frase directa, na cara: «Vai falar com o Camões!». Vem isto a propósito (?!) de, num destes dias, o guia de um grupo de caminheiros onde eu me incluia, interromper a marcha e informar «Agora vamos atalhar por um caminho que vocês ainda não conhecem.» Deu dois passos em frente e deixámos de o ver. Caiu por um barranco que vai acabar num areal banhado pelo Atlântico. O escritor Abraão Segismundo sossegou-nos, pois segundo o seu relato, quando iniciava a subida do mesmo acidente de terreno, cruzou-se com o nosso guia em queda, em velocidade moderada e aparentando razoável estado físico à excepção de uma fractura no metatarso do pé esquerdo.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, April 12, 2009

DA CANÇÃO DE ENGATE








Ainda trazia no ouvido o refrão da canção de António Variações quando chegou à estação do metro "Tu continuas à espera/ do melhor que já não vem/E a esperança foi encontrada/antes de ti por alguém/E eu sou melhor que nada." Não percebeu bem se a mulher do anúncio o encorajava sorrindo ou se lhe sorria ironicamente, pronta a escapar-se (dando lugar à publicidade a outro produto) assim que ele ensaiasse o primeiro de uma série de estafados galanteios ou se aproximasse perigosamente dos carris da realidade. Desta vez, Ludgero Casanova não arriscou, mantendo-se a uma distância que considerou a menos perigosa a desviantes devaneios porque na sua cabeça, uma multidão de mulheres que desejara ter possuido, algumas que julgara possuir e, finalmente, umas poucas que o possuiram, reuniam-se em plenário para decidir do destino a dar-lhe. A chegada do combóio para Telheiras salvou-o de ouvir um veredicto que não queria imaginar. Ofegante, entrou na primeira carruagem e sentou-se. Aos poucos a respiração voltou à normalidade e aguardou que a cabeça se esvaziasse de mulheres. Quando levantou os olhos, viu-a. Sentada à sua frente, uma mulher de rara beleza sorria com um sorriso como nunca vira outro igual. Não se conteve «Ah, tu também sorris, mas pelo menos não és uma mulher de papel!» Ela não deixou de sorrir «Engano teu. Sou de papel, sim. De papel de fantasia me vestiram.»
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, April 05, 2009

A NOTÍCIA









Bem poderia ter acontecido que ontem, caso tivéssemos sintonizado um dos canais televisivos nas notícias das vinte horas, escutássemos a voz dramática do pivot anunciando pesaroso «Jovem promessa das letras morre tragicamente.» E logo a seguir uma foto do infeliz - ainda adolescente, transportando uma prancha de skate debaixo do braço esquerdo, outra de surf, sob o braço direito e os pés calçados com patins em linha. Depois, os pormenores sórdidos, acompanhados de um arquear da sobrancelha direita do pivot «Abraão Segismundo ao caminhar absorto, congeminando mais uma saga literária da sua lavra a que já habituou os seus fiéis leitores, não reparou no precipício a seus pés, caindo de uma altura de cerca de cinquenta metros e sendo tragado de imediato pelas águas revoltas do oceano Atlântico. As buscas do corpo foram interrompidas sexta-feira à hora do jantar que se prolongou até de madrugada. Apurámos que serão reatadas após o pequeno-almoço de segunda-feira que se prevê demorado. Segismundo contava cinquenta e cinco anos, escrevia desde os cinco e ameaçava publicar uma primeira edição em papel, do manuscrito "Como Ser Feliz no País do Bacalhau Com Alguns". O reconhecimento público do malogrado autor, fazia-se sentir nos comentários aos elaborados textos que editava na blogosfera, nos infindáveis momentos de ócio que a sua desgastante e insuficiente remunerada actividade de administrador de duas holdings lhe permitiam.» Felizmente que tal acidente (lamentável) não aconteceu, como se comprova pela foto acima publicada e que - pelo sentido das pegadas, o escritor subiu pelo próprio pé uma encosta que não seria um precipício propiciador de quedas fatais e onde as ondas mansas do Atlântico morreram (essas sim) na areia onde se produziu este texto.
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.