Friday, February 27, 2009

OS ROSTOS DA CONVERSA
















Por vezes confundes-me. Não, não é por aí, pela variedade de faces que me apresentas quando tenho alguma disponibilidade para trocarmos umas palavras. Se eu fosse um sujeitinho irónico, fazendo de ridicularizar os outros o meu modo de vida e me esquecesse que tu és a minha cara chapada, diria que tens a dita totalmente preenchida de acne na forma de rostos-tipo-passe. Confundes-me, pois só muito raramente tens opinião, e com alguma dificuldade discorres ou argumentas na primeira pessoa do singular. Contas histórias mirabolantes que não são as que tu vives, mas as dos outros (e isso não é muito elegante, sabendo nós que quem nos lê, faz gosto de saber quem está por detrás das palavras que descrevem tais relatos) e, pelo tempo que te conheço, isso começa a ser inquietante. Porque as histórias, personificadas por gente tão estapafúrdia que não lembra ao diabo me merecem cada vez menos crédito e, sobretudo porque quando dialogo com tantas pessoas que tens dentro de ti, fico com a vaga impressão (ou será mau-estar?) que tu e eu (ou eu e tu) somos a mesma pessoa. Não te acontece pensar nisso? Ora, ora, que questão desprovida de sentido. É quase idêntica à de perguntarmos ao primeiro-ministro se está de boa-fé com quem o elegeu (mais os outros) e ele - iluminado por um clarão de humildade, nos remeter (mais a resposta) para o seu ministro da presidência...

2009. Texto, tela e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, February 19, 2009

O HOMEM DE UMA PERNA SÓ












Quando lhe abri a porta percebi logo que não se tratava de mais um daqueles pedintes que não temos maneira de saber se as necessidades prementes anunciadas em papel amarrotado e escrita de difícil leitura, o são de facto. Conturbados tempos estes, ditos de crise económica global, que fazem vítimas de facto e outros que se vitimizam sem o ser . Este, vinha de mãos vazias e esperou que eu fizesse a pergunta sacramental "O que deseja?" Pareceu-me ver alguma perplexidade no seu rosto e imaginei-o cidadão de um país distante perante a barreira assustadora de um idioma que não se entende. Mas não era assim, porque respirou fundo e falou em português de Portugal "Não quero que tenha pena de mim. Apenas pretendo que me dê água para eu poder continuar a seguir o meu caminho." Estranhei a solicitação ao mesmo tempo que os meus olhos desciam para a sua perna esquerda, de calça arregaçada e uma garrafa de plástico no lugar da pele e osso. Contou a história em poucas palavras "... eu era daqueles que ainda se esfarrapavam a trabalhar no campo. Mas os problemas multiplicaram-se de tal modo que, distraido, só dei pela máquina debulhadora me ter ceifado a perna, depois de perder o equilíbrio. Se não se importa - e se tiver, prefiro atestar com a do Luso. Que é a marca de origem da garrafa... "
2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, February 10, 2009

DO OUTRO LADO DA ESCRITA









"Hoje cheguei até aqui com a honesta intenção de te confessar que me sinto dividido. Sabendo ambos, até à exaustão, que de honestas intenções está o inferno cheio e que no lugar mais recôndito dos nossos seres guardamos religiosamente alguns pensamentos que dificilmente repartimos com alguém - mesmo aqueles a quem amamos ou juramos fidelidade, foi enorme o grau de dificuldade com que me defrontei ao decidir revelar-te em que consiste tal divisão. Ei-la, para provar a mim próprio que não tenho de me recear. Por um lado faço coro contigo, do sorriso que as minhas palavras te provocam, fazendo-te crer que deste lado vive um sujeito que se encontra de óptimas relações com a existência, quando, na verdade isso não corresponde à realidade pois detesto risinhos e a vida sempre me foi madrasta. Por outro, das vezes que uma frase minha anunciadora de maus presságios ou amores falhados te fazem rolar uma lágrima na face, entristeço-me solidário... mas o que me apetecia mesmo era soltar uma valente gargalhada, porque o fado nunca me seduziu. Dirás tu «Mas este gajo é um sacaninha de alto calibre!» Nada disso. Sou apenas aquilo que queres ouvir e que te dá prazer."

Nem se deu ao trabalho de ler a assinatura - pois reconhecia o estilo de olhos fechados. Encolheu os ombros e foi-se à vida. Que é como quem diz, ao teatro.

2009. Texto e foto de Alberto Oliveira.
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Se não é supersticioso porque dá azar, leia a edição número treze (13) da Minguante


Tuesday, February 03, 2009

A OVELHA VOADORA

Não é a primeira nem será a última vez que tentam entrar-me em casa não sendo convidados, utilizando o acesso mais natural nestes casos: a porta. Estou a referir-me, por exemplo, à minha prima em terceiro grau Sezinanda - com quem cortei relações logo que me informaram que tinha uma familiar com tão despropositada graça e que ainda não perdeu a esperança de me provar que o Alberto Jardim da Celeste tem mais piada que os Monty Phyton todos juntos. A uma anónima delegada de vendas de um monstruoso aparelho aspirador equipado com um arsenal de extras onde provavelmente se encontraria uma lâmina desfazedora de barbas assassina, que pretendia à viva força limpar cinco centímetros quadrados do enoooorme tapete de Arraiolos que se estende ao comprido no hall, para provar a eficiência da assustadora máquina de guerra. De um simpático casal sénior (raios m´partam se aquilo não é um arranjinho!) que não desistia de me convencer que uma conversa a três (como é que esta gente adivinhou que sou viúvo?) era meio caminho andado para cantar hossanas na próxima celebração de um credo religioso que não fixei o nome. Ou de um sujeito com mau aspecto que se apresentou como representante da tv cabo e quando lhe disse que já estava servido, pôs um pé entre a porta e o limiar da entrada. Bem arranjado estaria eu se não me ocorresse pisar-lhe os calos e fechar-lhe a porta na cara. Hoje, já quase noite, foi a vez de uma ovelha. Voadora. Que optou pela janela da varanda quem sabe se atraida pelos acordes jazísticos de Miles Davis. Voou, sobrevoou, subiu, desceu, mas não me convenceu. Nem sequer tinha consigo um lenço de assoar.

2009. Texto e vídeo de Alberto Oliveira.