Sunday, September 28, 2008

PASSEIO VIRTUAL





Naquele dia deu-lhe para ali: para quebrar a rotina, como se justificou a si próprio. Chamou o Meia de Leite e pediu-lhe abanando as ancas "Não te importas de me levar a passear?" Agradavelmente surpreendido o animal respondeu "Importar não me importo, mas onde é que seguro a trela? nos dentes?" Balsemão sabia da inteligência do Meia de Leite e daí estar preparado para questões desta natureza. "De facto, hoje vamos inverter os papéis mas só nós o saberemos, pois quem nos vir a passear não notará nada de extraordinário. No entanto, isso apenas será possível se fizermos muita força mental para que tal aconteça. Estás de acordo?" O cão baixou as orelhas e desalentado disse para com os seus botões "Já estava a achar muita fartura... Eu dou-te a força mental..." . Astuto, abanou o rabo "Vamos nessa, dono!" ( eu seja ceguinho se o ladrar do canito não se assemelhava à voz do José, aquele da Roda da Sorte!). Sentado no banco da praça, Bráulio chamou a atenção da mulher "Tu vê-me aquilo Felismina! O vizinho Balsemão todo nu e a andar com as mãos no chão!! é a primeira vez na vida que presencio um homem a imitar um cão e, a seu lado, um cão a caminhar de pé como se fosse um homem! Oh mulher! se o vizinho fizer menção de levantar a perna, tu tapa os olhos com os dedos todos bem unidos, ouviste? "


2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, September 23, 2008

PASTORAL


Quando abriu os olhos, Adalberto mal conseguiu distinguir -envolta numa espécie de nuvem, a face feminina que se debruçava sobre ele ajeitando-lhe a máscara de oxigénio. Porque o seu corpo parecia não lhe pertencer, imaginou o pior. Por fim, ao soletrar o nome da jovem enfermeira "Es-tre-la" a letras negras que se destacavam na bata branca, suspirou "Do mal o menos: é bem capaz de ser a Senhora da Boa Estrela, padroeira dos pastores e devo ter chegado ao céu." A muito custo conseguiu articular "Não me minta. Tive um fim difícil não foi verdade? " Ela sorriu docemente "Não se atormente que a vaca com um coice, apenas o deixou paraplégico e ainda vai ter muitos anos de vida para reconhecer as diferenças entre a fêmea de um boi e o olhar mortiço de um carneiro."

2008. Vídeo e texto de Alberto Oliveira.


Tuesday, September 16, 2008

O QUE A NUVEM TAPA O SOL DESTAPA






A coisa estava organizada de maneira que os primeiros dez mil banhistas a chegarem à praia apenas tinham tempo de se descalçar e entrar em grande velocidade na água. Os outros dez mil que entretanto iam chegando, aguardando no areal a ida ao banho, esperavam então pelo soar de um sinal acústico accionado pelo banheiro e por trocar de posição com os que então se banhavam. Sendo certo, que na confusão gerada pelo encontro da multidão que saía da água e da que entrava na dita, quais tri-atletas descontrolados, algumas crianças de colo eram apartadas dos pais, muitas mulheres perdiam o rasto aos maridos e um número apreciável de idosos ficava privado de canadianas, bengalas, andarilhos e próteses diversas, não é menos verdade que, ao cabo de uma dúzia de sinaléticas acústicas e da permuta dos veraneantes entre a água e a areia ao longo da manhã, por força da rotina de tal vai-e-vem, a situação tendia a compor-se. A minha prima Edviges -radicada há muito num país escandinavo, é que não se deixou arrastar por tais correrias bárbaras. Ei-la na imagem em primeiro plano, momentos antes de se ouvir o sinal acústico e de ficar sem a peça de baixo do biquini azul-marinho.

2008. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Thursday, September 11, 2008

A ROTA DA SEDE





Sedento, mediu a distância a que se encontrava da lata de refrigerante e franzindo as penas pensou "Óptimo! para me dificultar ainda mais a vida o sujeito que me atirou para esta história pôe-me a raciocinar quando o que pretendo é apenas beber." Avançou mais dois passos curtos e saltitantes "Calma, não te atires à doida" reflectiu. "Se te foi dada a possibilidade de puxares pela cabeça, fá-lo. Imagina então que a lata está vazia. Ou que no seu interior se encontra um lagarto daqueles que se pelam por filar pelo bico tudo o que é ave. Mas se por acaso ainda houver algum líquido, tu nem sonhas os malefícios da sua composição. E não ficas saciado... " Recomeçou a marcha mas agora bem encostado à borda do rio não olhando sequer para a lata verde que antes o tinha desatinado. Depois, esvoaçou para a embarcação azul e nela partiu célere em busca de um lugar onde se pudesse dessedentar, longe de provocações visuais que lhe dessem cabo dos neurónios. Com a pressa, o pombo nem deu conta do zeloso guardador do pequeno barco -um enorme gato preto, que não perdeu tempo em lhe segurar uma asa enquanto lhe ciciava ao ouvido "Tenho-te cá uma sede..."

2008. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Saturday, September 06, 2008

DA INTERPRETAÇÃO DOS TÍTULOS













Sorriram-lhe os olhos quando leu (em letras garrafais) a designação do espaço jardinal. Finalmente, algo à medida dos seus desejos mais secretos: manipular a seu belo prazer -como se tratassem de soldadinhos de chumbo, criaturas que devido às suas reduzidas dimensões não teriam argumentos físicos para ele. Ainda não tinha completado dois passos após ter ultrapassado de rompante a entrada e logo se fez ouvir num altifalante a gravação de uma voz que solicitava "Pedimos aos residentes deste jardim que caminhem com o máximo cuidado para não pisarem os amigos visitantes". À hora certa e no local errado, estarrecido, apenas teve tempo de ver o gigantesco sapato que se abatia sobre a sua insignificante cabeça. A escassas horas depois e a alguns quilómetros dali, José Hera, dono do restaurante Temperos de Sonho estranhou a demora do doutor Funcho. "Adventícia!" -pediu à cozinheira "Põe uma dose de jardineira num taparuére e guarda-a no frigorífico. Isso hoje está tão bom que até dá vida a um morto!"

2008. Foto e texto de Alberto Oliveira.