Tuesday, May 27, 2008

A DIVA NO DIVÃ






Foi como que uma dádiva celestial: lentamente e com trejeitos de volúpia, a diva deitou-se no divã do amplo camarim, vestida tal como se apresentara ao público minutos antes no palco do Scala, catedral mundial do belo canto. Se então da sua garganta brotaram aplaudidos sons agudos, agora dos seus lábios cerrados nem um ou um mi se deixavam escutar. Os belos olhos da soprano, esses sim, fitavam bem abertos e interrogadores Urbino José, caçador de autógrafos de profissão e adepto confesso da música em geral nas horas de ócio. "Minha linda! Raras vezes me acontece uma situação destas e ainda não estou em mim! Lembrar-me eu que o mês passado em Londres, me vi grego para encontrar uma Winehouse lúcida e receptiva e agora tenho-te aqui, bela e -quase me apetece dizer, indefesa... " Francesca Lombardini além de usar divinalmente a voz, era uma mulher prática "Mas afinal em que ficamos? Dispo-me eu, ou rasgas-me tu o vestido?" Urbino não estava preparado para tanto: de ser uma mulher a tomar tal iniciativa. Enervou-se, transpirou, torceu os dedos, enviezou o olhar, mas uma imagem inspiradora salvou-o no último momento: a do sujeito que foi comprar tabaco e não regressou ao ponto de partida. (Desenganem-se os leitores que me imaginam a deitar mão de argumento literário tão próximo do cordel... ) Teatralizou a procura de algo que escrevesse, nos bolsos do casaco, que convenientemente não encontrou e descansou a operática cantora "Não precisamos de correr a foguetes, amor. Nunca ouviste dizer que devagar se vai ao longe? Vou ali abaixo num instante comprar uma esferográfica e já volto."
Milão, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, May 22, 2008

DO PODEROSO AMOR PELO PODER







Primeiro comprou a t-shirt porque não era pessoa para esconder as suas inclinações amorosas. Anunciava assim, frontalmente, a quem o quisesse ler no verso, que também ele deixava de estar disponível para outros amores menos interessantes (ou mais rasteiros, como costumava ironizar sobre aqueles que se amam deitados, forma inferior de possuir o amor) e que pertencia a esse clube a que poucos tinham acesso: do incomensurável amor pelo poder do amor. Assim mesmo: a maioria dos membros, através do poder do amor alcançavam o poder-poder. Logo a seguir, desta regra que no início lhe pareceu assaz complexa, fez dela a sua bandeira e, enquanto o diabo esfrega um olho e duma assentada, apaixonou-se por uma presidência de câmara municipal, por um ministério e pela administração de uma empresa estatal. Preveniram-no que amores tão em simultâneo, ainda não estavam previstos pela moral vigente, mas um dia -quem sabe?, lá se chegaria... Por enquanto, o mais avisado seria amar um poder de cada vez e dele tirar o máximo prazer e proveito. Cícero, prometeu ponderar o conselho e nessa noite, fez amor com a presidência da câmara três vezes. De pé. Ontem, fui encontrá-lo sentado, no fora-de-borda, mirando as plácidas águas do rio às quais se costuma confessar com regularidade. "Então como é que vamos de amores?" perguntei-lhe. "Uma confusão de sentimentos do diabo! Ainda os lençóis da presidência da câmara não deviam estar frios, já andava eu atrás das saias da pasta da justiça. E a verdade é que também não me sai da cabeça, o peito farto da administração da empresa estatal. Mas isto há-de compor-se que o poder do amor... "

Hamburgo, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, May 17, 2008

E SE A DÚVIDA NÃO NOS ASSALTA?





Logo após a primeira refeição do dia meteram pés a caminho explorando rua após rua, avenida após avenida, a cidade desconhecida. Andarilhos experimentados, sentiam-se tão à vontade numa urbe nunca antes visitada, como se ela fosse aquela de onde -por força das circunstâncias (ou do destino?), faziam a sua vida rotineira e ponto de partida para a descoberta de outras urbes, onde por força de conjunturas (ou dos acasos da vida?), se cruzariam com gentes praticando idênticos (ou quase) actos de rotina e desejosas também elas de partir à descoberta de
é curioso verificar que, ao viajar, acabamos inevitavelmente por voltar ao ponto de referência inicial, sem ter forçosamente de regressar ao sítio de partida. Bom... tenho de confessar que este foi o argumento que tinha mais à mão para ganhar algum tempo e tentar perceber porque motivo parti para um texto que anda a viajar à volta de si próprio.
outras cidades. Para alcançar o centro pelo trajecto menos longo, teriam de percorrer uma rua secundária, sem movimento e de edifícios sombrios. Dois quarteirões vencidos e avistaram (saido não sabem de onde) mais à frente e numa zona descampada, um indivíduo de aspecto corpulento, parecendo esperá-los. Arquimínio respirou fundo e trocou um olhar de entendimento com Heliodora "Passamos para o outro lado da rua ou continuamos neste? é que não tenho dúvida que estamos metidos num grande sarilho", sussurrou sem deixar de olhar em frente. Ela estremeceu "Se não me tivesses dito nada, persistia na dúvida. Agora, tenho o coração mais apertado que aqueles sapatos que comprei para a passagem do ano que me me disfarçavam o tamanho dos pés". Decidiram prosseguir pelo mesmo caminho. Quando chegaram ao pé do homem este barrou-lhes a passagem "Não temam. Apenas vos quero pedir que, quando regressarem ao vosso país, façam sentir a quem tirou esta fotografia que bem podia ter prevenido que o ia fazer. Teria desfeito a barba, vestido outra roupa mais apresentável e na dúvida... assaltava-vos os pensamentos."

Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, May 12, 2008

O DOLOROSO DESTINO DE SER DECORATIVO








"E se nos deixássemos de rodeios e déssemos um valente mergulho no Spree ?" perguntou o cavalo que tinha o secreto sonho de um dia poder vir a ser marinho, ao cavalo que tinha a certeza de ser tímido -e por isso mesmo, apenas permitia que lhe fotografassem a extremidade do focinho. "Não estás bom da cabeça! Como se sentiriam as pessoas que já se habituaram a apreciar-nos ornamentando esta protecção sobre o rio? Defraudadas, claro. E na nossa ausência, que hipótese teríamos hoje de ilustrar um texto na blogosfera? Nenhuma, é evidente." O equídeo que perseguia o sonho de vir a ser cavalo-marinho, não queria acreditar no que ouvia do seu tímido parceiro "Desiludes-me. Além de te ser difícil assumires a condição de cavalo por inteiro, conformas-te com a condição de mero objecto decorativo. É por cavalos como tu -de limitados horizontes e garupa encolhida, que nos trazem sempre à rédea curta. Pois fica, que eu escolho atirar-me ao rio." E se bem o relinchou, melhor o fez: rasgou os ares num salto perfeito ao encontro da utopia. Uma criança que passeava pela mão da mãe, gritou na inocência dos seus quatro anos "Mamã! mamã! vi um cavalo a voar!!" A mulher olhou-a enternecida "Eu sei que tu és uma menina com muita imaginação, mas não deves ser teimosa: já te disse mais que uma vez, que neste rio só há cavalos-submersíveis".
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, May 08, 2008

DAS VERTIGENS







Arrependeu-se assim que o balão se afastou do solo meia dúzia de metros e, logo depois, as casas parecerem construções de legos e as pessoas formigas. Quando uma águia enorme lhe passou em voo rasante rente ao nariz, tremeram-lhe as pernas e deu graças pelo bicharoco não ter sonhado que esteve a centímetros de um lagarto convicto, testando os níveis de coragem de voar sem asas. No interior de uma grande nuvem branca, imaginou-se pálido e defunto, preparando-se para o interrogatório de prestação de contas ao Divino, ele que carregava na consciência, um considerável peso de dívidas e de outros pecados de difícil avaliação. Um companheiro de viagem perguntou-lhe se estava tudo bem com ele. Saindo enquanto o diabo esfrega um olho, da prova celeste, respondeu que "Sim, estou muito bem. Em terra firme." Não fez caso de quem o preveniu que devia ter vindo bem agasalhado, que nas alturas a temperatura não era pera doce e agora batia os dentes de frio, agarrado com unhas e dentes ao rebordo do cesto de vime da máquina voadora de ar quente. Quando o piloto fez sinal que iam descer e o balão estremeceu, nem quis olhar para baixo: sofria de vertigens com vertiginosa frequência. Abriu os olhos devagar, depois do embate um tudo nada violento com o chão. Estava sentado num banco de jardim e segurava nas mãos um livro de banda desenhada. Como quem não quer a coisa, aproximei-me e li por cima do seu ombro, o título da capa "Arsénio: de vertigem em vertigem". E apreciei o desenho de uma figura masculina -que dava ares do homem sentado no banco do jardim , agarrada com unhas e dentes ao rebordo do cesto de vime do balão de ar quente e, um outro balão (este sem cesto de vime) onde se encontravam dentro as palavras de Arsénio "Sim, estou muito bem. Em terra firme."
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, May 03, 2008

AS ÁGUAS DE TODOS OS RIOS






O Tejo tem-no acompanhado desde que abriu os olhos para o mundo. Talvez por isso, dificilmente conceberia viver nalguma cidade, vila ou aldeia que não fosse banhada por um rio. Depois, há também a questão estética não menos importante: haverá cenário paisagístico mais agradável para os olhos que as águas de um rio a bordejarem casas, estradas, montes ou vales? Não há, rebate ele, sem esperar por opiniões divergentes daqueles que por força de circunstâncias diversas têm com a água uma relação mais ou menos distante. Remígio, é daqueles que não se ensaia mesmo nada para passar uma tarde de um dia de lazer, a andar de cá para lá no barco que une as duas margens da Grande Lisboa, mirando e remirando sonhador as águas que lhe passam à frente do nariz vindas da lezíria e com encontro marcado com as do Atlântico, logo ali à saida da barra. Ele sabe que é alvo apetecível para o riso dos marinheiros do cacilheiro e que entre eles, é conhecido pelo Infante Don Henrique do Cais da Rocha, onde alguns já o viram olhando na direcção do Bugio. Mas finge que não percebe. Ontem, de regresso à capital e com a embarcação a fazer a manobra de acostagem ao cais do Cais de Sodré, dei por ele ao meu lado e não me contive "Desculpe a ousadia, mas você não se estafa de olhar o rio com tanta insistência?". Não consegui ler no seu rosto qualquer enfado quando me respondeu "E você não se cansa de escrever sobre pessoas procurando adivinhar o que lhes vai na cabeça?".
Rio Vltava, Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.