Monday, April 28, 2008

MANHÃS

Ganimedes levantou-se de um salto. Não era daqueles que acordados por um despertador -estratégicamente adiantado cinco minutos à hora real, ainda ficavam, pelo menos outros tantos, protegidos pelos familiares lençóis, procurando recordar pormenores de sonhos (e pesadelos, que estes são em maior quantidade nos conturbados tempos que se vivem) ou indo buscar coragem onde ela não existe, para enfrentar as duras realidades de um quotidiano que teima em repetir-se sem o sal nem a pimenta de vivências apenas possíveis a quem nasceu com o rabo virado para a lua. Não. Ele era pão-pão, queijo-queijo: chegava a hora de dormir, deitava-se. Na de acordar, levantava-se. Sem mais delongas. Cacilda, sua esforçada companheira, costumava observar: "Tu tens no leito, apenas uma posição: deitado. No chão, o jeito de estares sempre levantado." Conformada, dedicara-se nos últimos tempos à rima, uma vez que o marido na posição horizontal, entregava-se ao sono de alma e coração. Mas o despertar desta manhã, estava a ser no mínimo, invulgar: os acordes da rotineira marcha musical, não provinham do relógio-despertador no quarto do simpático casal. Na rua, passavam dois homens tocando tambor e pífaro. Da janela, Ganimedes observando-os, espantou-se "Cacilda! Com este barulho, até o Florival das Finanças, que está em coma há dois meses, vai acordar e chegar a horas ao emprego!"


Valência, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, April 19, 2008

O HOMEM, O TEMPO E O MODO








Aproveitando uma aberta da chuva que faz jus ao provérbio que popularmente define o mês de todas as esperanças em melhores tempos, o homem escolheu um banco do jardim deserto e nele acomodou a saliência abdominal (e todas as restantes saliências físicas) sobre o assento onde por norma se sentam traseiros dos mais variados formatos e procedências. Notarão os leitores -assim a visão e a memória vos seja propícia, que é a segunda vez em curto espaço de tempo, que por aqui -e pelos desígnios da escrita, se descrevem dois homens em idêntica posição corporal . Que isso não concorra para efabulações diversas e fantasiosas sobre as apetências descritivas do autor, das suas personagens ou do seu género, pois é de mera coincidência que se trata. Mas voltemos ao nosso homem, pessoa que dá igual uso a um banco público como antes dava a uma cama, frequentador assíduo de jardins imaginários, de corpo marcado por muitos temporais e de ouvidos cheios de esperanças não concretizadas. Deitou-se hoje aqui, espaço virtual de realidades ficcionadas e pediu-me para lhe tirar uma foto. Que "... era para a posteridade. Para que os vindouros, vissem como era o rosto de um homem desocupado pela força das circunstâncias?! e que nada tinha para dar porque tudo lhe tinham tirado." Fiz-lhe a vontade no que se refere à fotografia mas não lhe apanhei a cara. É que há sempre uma secreta esperança, não é?
Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, April 14, 2008

(DES)ACORDO COM SOTAQUE






Com a rotunda barriga aterrissada sobre a toalha azul que não o impedia de sentir a frialdade da areia, as mãos a apoiar o queixo e o olhar divorciado do sobe-e-desce das oceânicas ondas, perguntava-se agora porque razão tinha enfiado a família na carrinha wolkswagen e rumado à Fonte da Telha. Nem a meteorologia previa um domingo de sol à bessa, nem os valores da temperatura máxima se situavam -pelo menos, ao nível dos derradeiros dias de uma Primavera à séria, que de primaveril só tinha tido o nome. Pior ainda, a decisão de zarpar fôra tão rápida, que Amândia -sua dedicada companheira, nem tempo tivera de comprar rissóis e cervejas para os adultos e picolés para a gurizada. (Valeu a solidariedade do autor do texto, e a passagem pelo local, oferecendo duas loirinhas do seu harém privado -que se distiguem na imagem, para os mais encalorados.) Lentamente, deixou-se vencer pelo sono. E sonhou que jogava futebol (o seu esporte favorito), a areia da praia era agora um gramado cor da esperança e driblava toda a família -qual Ronaldinho Gaúcho, para logo a seguir rematar ao gol. Era um celebrado e bem pago artilheiro... Saiu na hora, antes mesmo do apito final, para receber a ovação da torcida. Na cabina, depois de uma revigorante ducha, vestiu seu terno azul de campeão. Foi neste momento do sonho que, com ternura, Amândia o acordou "Vamos andando Indalécio, que não tarda nada, cai uma carga d´água que até os cães a bebem de pé." Ele piscou os olhos, olhou o céu cinzento, sorriu e disse "Que bobagem! Sonhei que era consultor da Vodatronix e embora não ganhasse ainda uma nota preta e tivesse muita dificuldade em apanhar o bonde para Sete-Rios, peguei um trabalho certo... " Ela sorriu condescendente "Mentes tão mal, mas de fato fica-te a matar esse sotaque."
Quarteira, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, April 09, 2008

DO SOPRO









Era um pessimista e tinha razões de sobra para o ser, pois segundo ele, tudo lhe corria mal. Nem a expressão "nada me corre bem", tinha lugar no seu vocabulário... A firme convicção que nascera para atrair a má sorte estava de tal modo enraizada no subconsciente de Libânio, que quem o quisesse ver, era certo e sabido que o encontrava a soprar de raiva, maldizendo azares e desventuras que lhe batiam à porta constantemente. Tanto soprava, que Onofre -amigo chegado, lhe sugeriu que devia experimentar nas horas de ócio, dedicar-se a uma actividade lúdica como era o caso da música instrumental... de sopro. Protestou que "burro velho não aprende línguas e a arte de combinar os sons", mas a novidade de se ver com um trombone de vara nas mãos (instrumento que muito apreciava pelo movimento de vai-e-vem), falou mais alto e aceitou a ideia. Onofre, ao cabo de largos meses sem ter notícias do amigo, soube por via do insuspeitado e muito lido semanário "O Dia Sangrento", da tragédia: Libânio não se tinha entendido com o trombone de vara e trocou-o por uma trompa de caça. Um tiro perdido, na perseguição a um javali difícil, ditou-lhe o último sopro de uma vida pontuada pelo pessimismo.
Valência 2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, April 03, 2008

O QUE NÃO MATA ENGORDA










"Não se preocupe em tirar a mosca do sumo que eu sou de boa boca." exclamou Desidério para o empregado ao balcão, acompanhando a frase com uma risada e um gesto largo de braço como que significando "quantas moscas já não comi sem dar por isso... ". Quem não lê pela mesma cartilha é a mulher do seu amigo Epifânio (de camisola verde pelas costas) que serrazina os ouvidos ao marido "Parece impossível! Juro que vi o tipo ali à esquerda, meter os dedos pelas ventas acima e agora, na maior das calmas, prepara o pão para a tua sanduíche de presunto. Não me digas que não vais protestar?! Ele nem a cara lhe volta quando responde, pois a sua curiosidade está toda centrada nas unhas negras (deve estar de luto coitado! imagina pesaroso) do empregado dos sumos de laranja "Ó mulher! Tu nunca ouviste dizer que olhos que não vêem, coração que não sente?"
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Ao "abrirem" a imagem, os leitores hão-de reparar que Desidério levanta o braço pela segunda vez, segurando agora entre os dedos, duas moedas de dois euros para pagar o sumo de laranja que entretanto bebera. O autor dos textos aqui editados, não se responsabiliza pela inaudita pressa com que algumas personagens dos seus relatos, procuram sair deste sítio.

Valência, 2008. Texto e foto de Alberto Oliveira.