Tuesday, February 26, 2008

DE GUARDA AO PAPEL

Bateu-me à porta assim, exactamente fardado como aparece na imagem. Levou discretamente dois dedos à pala do boné no gesto usual de saudação castrense e nem me deu tempo a abrir a boca "Venho oferecer-lhe os meus serviços porque sei que precisa de mim." Numa fracção de segundos imaginei o filme: o nosso primeiro visitou o centro de emprego da área onde resido, espantou-se de me saber inactivo durante quase dois anos, convida-me para a pasta da defesa e este militar é o meu oficial às ordens. Mas... não faz sentido! Se a última ocupação certa que exerci foi a de marcador-avivador das "quatro linhas" do estádio municipal de Sarilhos Médios de onde fui despedido por -num dia de enorme pressão laboral, pintar a marca de grande penalidade logo a seguir à da circunferência do centro do terreno... como é que ele poderia ver em mim, o titular de uma pasta recheada de problemas militares, como eram as constantes invasões ao nosso território, por parte de franceses e espanhóis? Dirão vocês "mas há muitos anos que não nos invadem?!" Pois sim! Quem invade uma vez, invade outra quando menos se espera e sem pedir licença. Angustiado, porque o exercício mental raramente faz parte dos meus hábitos desportivos e pela dúvida que a presença do militar empertigado me suscitava, perguntei-lhe diplomaticamente porque portas e travessas tinha notícias das minhas necessidades, quem foi o bufo que lhe cantou que eu estava no desemprego e, onde é que o "soldadinho de chumbo" iria exercer as suas funções. No rosto, não lhe notei qualquer traço de surpresa quando me respondeu firme e lacónico "Aqui, no "Fantasias", lugar público, onde o senhor descarrega todas as suas extravagâncias alucinatórias e se expõe à ira dos virús, worms, spyware, dialers, jokes e tantos outros. " Face a estes argumentos, o que poderia eu fazer senão dar-lhe carta branca? Dez minutos depois, ei-lo neste sítio, -de guarita montada, aprumado, armado, vigilante e de luva branca...


Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, February 21, 2008

DA MENSURABILIDADE





















Hoje faço uma pausa, tiro-me do riso e franqueio as portas da minha actividade principal a quem neste local se detém e faz o favor de me ler, convicto de que será -no mínimo curioso, saberem algo mais sobre o autor dos escritos fantasiosos que neste papel se vão publicando. Se a vossa suposta curiosidade não passa pela minha pessoa, não percam tempo: de manhã, levem a família ao jardim Zoológico, almocem no Gambrinnus, passeiem de teleférico no Parque das Nações, lanchem nos pastéis de Belém e acabem a tarde de sábado no centro comercial Amoreiras. Depois disso, se conseguirem chegar a vossa casa no domingo à noite, têm bilhetes à borla para o meu próximo concerto. De facto, a imagem que vos deixo, refere-se a um momento de aquecimento da banda onde actuo, antes da participação no XCVII Festival de Rock de Alcanena . O primeiro da esquerda na foto, é o Márcio, brasileiro de Curitiba e que chegou com a intenção de tratar dos dentes aos portugueses, deu-lhes cabo dos ouvidos tocando trompete (no JazzAqui da Pontinha) e acabou em teclista. Trajando de negro (é daltónico assumido) e não deixando ver o rosto por via de um hematoma no olho direito (assegura que deu uma queda em casa após um animado debate musical com a companheira) , temos Renato o Gato (é assim que as nossas assanhadas fãs lhe chamam) que dá a voz às lyrics do nosso repertório. De costas para a objectiva, Martin Ganso, o virtuoso da guitarra e da velocidade sem bola nos pés, nos tempos em que alinhava a lateral no Desportivo do Alto do Pina. Na bateria, de pé(!?) este vosso criado, Deodato Efe de meu nome artístico, de estatura abaixo da média, mas com enorme potencial para a música. Recordo que este concerto ficou marcado por um episódio caricato com um espectador. Já o nosso alinhamento ia a meio quando um tipo grita da segunda fila: "Ó da bateria! não te consigo ver!!" Não desarmei e respondi-lhe com outra pergunta:"Vê lá se me queres oferecer uma cadeira?!" E o outro para mim: "Ofereço-te pois! Uma cadeira-eléctrica!!"


Nuremberg, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, February 16, 2008

NA DIVERSIDADE...
















... é que se encontra o sal da vida. Esta filosofia que Demétrio Salgado cultiva desde criança, já lhe tem trazido alguns amargos de boca mas nem por isso lhe fragiliza a vontade de prosseguir no objectivo que apontou para aquilo a que chama de uma "existência onde a monotonia não tem lugar". Casualmente, cruzei-me com ele ontem, no Saldanha. Ia em direcção ao Marquês de Pombal, numa caminhada "à mão" (sim, que "a pé" andam aqueles que não conhecem o significado do adjectivo "diferente"... ) que percorre diariamente do Campo Grande à Rua Augusta. É nessa artéria -pedonal para a maioria, manual para ele, que se dedica ao seu pequeno negócio: venda de passwords usadas e de pequenas saquetas de plástico com pelo púbico de aborígines das Ilhas Papua. Afirma que os ganhos são suficientes para almoçar à noite, jantar de manhã e tomar o pequeno-almoço à tarde. Confessa que os melhores clientes são os portugueses porque não fazem perguntas difíceis e detesta os nórdicos exactamente pelo contrário. Também não morre de amores pela polícia municipal que, por uma vez, lhe algemou os pés por andar com as mãos descalças pela rua. Admiro o modo como o Demétrio está na vida, que opções destas não são fáceis de tomar. Lancei-lhe um "Olá! ´tás bom?" e acenou-me amigavelmente com o pé esquerdo. E cada um de nós seguiu o seu caminho. Ele, deixando atrás de si um rasto de espanto e confusão. Eu, anónimamente, no interior da massa humana .

Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.
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Por falta de energia, hoje não se tecem considerações sobre a cadeira-eléctrica da minha "perdição".

Monday, February 11, 2008

A FOTO QUE FALTOU



Se há coisa mais desagradável para o escriba das crónicas do quotidiano que com a regularidade dum relógio moldavo* se publicam neste espaço é, decerto, a suspeição com que alguns leitores encaram a veracidade desses relatos. Não vale a pena fingir que não percebem, encolhendo os ombros ou ensaiando um vago olhar de comiseração: o autor tem o retorno dos seus escritos por via de fontes mais cristalinas que as águas do Tejo e envidará todos os esforços no sentido de que a credibilidade deste sítio não seja posta em causa como de mais um projecto de uma nova ponte se tratasse. Porque a verdade é como o azeite, aqui fica a foto do nadador do texto anterior a emergir das águas daquele perigoso rio e, segundos antes de se socorrer da mão do mestre do cacilheiro** que o salvou. Aproveita-se a oportunidade para informar em primeira mão que o caso da cadeira eléctrica poderá vir a ser arquivado.
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* Já chega de relógios suiços. Que se dê o lugar a outros.
** A embarcação que faz o percurso Belém-Trafaria tem mesmo esta designação. Não é por acaso que o barco que parte de Cacilhas para Lisboa não se chama "lisboeiro"...
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, February 06, 2008

DESESPERADAMENTE...












... nadava, procurando descobrir o porto de abrigo que o fizesse esquecer os minutos dramáticos por que estava a passar. Mas pressentia que por cada braçada dada, menor era a distância que tinha dos perseguidores marinhos. E a sensação terrível que o monstro-guia estaria a escassos centímetros de lhe abocanhar os calcanhares, mais o desmoralizava fisicamente. Bem avisado tinha sido -por quem aquelas águas conhecia desde sempre, dos perigos que poderia enfrentar se teimasse em levar a cabo a travessia daquele rio, sem a preparação adequada e equipado a preceito. Mas quando se lhe metia qualquer coisa na cabeça, nada havia que o demovesse, a ele, que para se manter à superfície na água, de costas, era quase preciso um requerimento em papel timbrado. Isso -depois dos primeiros cem metros decorridos, levantou-lhe sérios problemas de alimentação, pois do tacho de arroz de frango que a mulher lhe arranjou, foi quase tudo para os robalos, que o acompanharam outros cem metros, na expectativa de arroz-doce para a sobremesa. Depois, a meio do rio e em frente ao Cais do Sodré, por pouco não colidia com um submarino que rumava ao Alfeite fora de mão.. Quase a passar sob um dos pilares da Ponte 25 de Abril, não faltou muito para ser atingido por um isqueiro, atirado lá de cima por algum fumador exasperado. Foi a partir daí que começou a caça ao homem pelos predadores marinhos. Quando já se imaginava triturado nas entranhas de um dos monstros, sentiu a mão salvadora do mestre do cacilheiro do percurso Belém-Trafaria, a içá-lo para bordo. No meio dos aplausos, das felicitações e com um cobertor a cobri-lo, perguntou de imediato a um sujeito que lia a Visão se "já se sabia mais alguma coisa da cadeira eléctrica?". O homem abanou a cabeça desalentado "Nada. Continua sem aparecer. E enquanto você andava para aí a banhar-se, desapareceu também uma torradeira novinha em folha!! Trabalho de algum pedófilo, claro..."
Almada, 2008. Texto, tela e foto de Alberto Oliveira.