Friday, December 14, 2007

A PREOCUPAÇÃO...
















... sobre as coisas do social, não é comum apenas aos humanos em geral e aos portugueses em particular. Este animal, natural de uma aldeia lusitana do interior, é o exemplo dessa preocupação que o enrugado da testa não desmente. E se acrescentarmos que as orelhas murchas são sinal evidente de algum fatalismo, o retrato está tirado. Acompanhou o dono até ao litoral, tendo-lhe sido prometida uma vida de horizontes mais alargados em que a casota com ar condicionado, a comida com a marca de uma grande superfície, o emprego certo como cão-guia de um cego de largas posses e cadelas jovens disponíveis para a diversão nocturna -que um cão não é de pau, não seriam paraísos impossíveis Foi necessário algum tempo (demasiado tempo, que as expectativas de vida para um cão não são as mesmas que as dos humanos) para se aperceber que a distância entre o paraíso e o inferno se pode medir por um passo de formiga. Às promessas -que não passam disso mesmo, há muito que deixou de lhes dar crédito e não fosse o peso da idade concentrado nas patas, já as teria metido a caminho daquilo que ouve dizer, ser a europa da abastança. Preocupação acrescentada também, porque alguns que ainda ontem eram tão rafeiros como ele, e que hoje -não sabe bem como, foram promovidos a jovens-cães-iluminados, passam por ele cheios de boa-disposição e de outras coisas ainda mais apetecíveis, e em latidos despreocupados, lhe desejam um dois mil e oito pleno de alegrias. "Impostores", ladra entre os poucos dentes que lhe restam.
Nuremberga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, December 07, 2007

"QUEM VÊ CARAS...
















... não vê corações". O provérbio -de grande riqueza descritiva na dualidade entre a visão de uma face atraente e aquilo que apenas se consegue distinguir através de um ecocardiograma, adaptava-se na perfeição ao enredado cenário que os seus olhos observavam e lhe perturbavam a mente. Tinha a convicção que o encontro que marcara com Linda naquele café em frente ao Sony Center, seria decisivo na relação que ainda mantinham, mas que se vinha deteriorando de dia para dia e que os argumentos a serem proferidos por ambos, tinham à partida a marca iminente da ruptura. Por ter chegado um pouco antes da hora aprazada, os seus sentidos centraram-se então nas três caras femininas -reflectidas para o exterior, por via do vidro do estabelecimento, nas quais adivinhava aventura e sedução. Da perturbação inicial a um relaxante e agradável torpor, foi um passo. Apenas um vago odor a latex o despertou para a chegada dela: "Acho que nem vale a pena falarmos Deo. Já estás de partida para outras, não é verdade?"


Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, December 01, 2007

O PAPÁ FOI DE VIAGEM
















Apelando à força interior que lhe restava para demonstrar serenidade, pediu à criança "Diz adeus ao papá filhote!" Este, na inocência dos seus três anos, levantou o olhar surpreendido e perguntou "E para onde é que ele vai naquela caixa preta?" Laura Linda não resistiu mais e os olhos inundaram-se de lágrimas "Vai fazer uma longa viagem meu filho, e só nos juntaremos a ele quando iniciarmos também a nossa." "E porque é que não vamos já, mamã?" Ela mediu a altura da passadeira aérea e...

... acordou com um grito lancinante saido das suas entranhas que fez com que Deodato desse um valente salto na cama. "O que aconteceu à minha bonequinha insuflável mais dócil e querida? Sonhou que era uma mulherzinha à séria, foi?"
.................................................................................................
Se gosta de emoções fortes com finais pouco simpáticos, este texto foi escrito a pensar em si. Caso contrário, e se o leu, parabéns; há outros horizontes à sua espera.
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.