Monday, November 26, 2007

PESADELO

















"Quem quer casar com a cadelinha que é bonita e tem malhinhas?" assim ladrava com a lágrima teimosa ao canto do olho, à janela das águas-furtadas, a canídea apavorada com a ideia de ficar irremediavelmente para tia dos cento e um sobrinhos dálmatas. O cocker spaniels de pelo castanho lustroso que passava, nem se dignou olhar para cima. Foi andando, ao rabo dando e entre dentes rosnando "Era o que faltava: cruzar-me com uma cadela de bengala e com o pelo todo manchado do shampô barato."



Clicar na imagem para ver melhor o animal. Não clicar no animal para não ficar com mais nódoas negras.
Só agora dei conta que as águas não foram furtadas. Apareceram no primeiro andar do imóvel.
Estrasburgo, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, November 22, 2007

É TÃO BOM VIVER NO CAMPO!
















Impôs a si próprio o desafio de passar duas semanas numa casa de campo sem telefone fixo, telemóvel, rádio, televisão e onde a distribuição de jornais e de correio -por motivos que não são para aqui chamados, não se fazia. A vizinhança mais chegada tinha-se transferido para o litoral e os espectáculos culturais ou qualquer forma de entretenimento, centravam-se na cidade mais próxima a cerca de duzentos quilómetros. Explicou a familiares e amigos que não se tratava de uma daquelas doidices que lhe assolavam o pensamento (e a acção) com alguma regularidade e a que eles já se tinham habituado, que não ia fazer um retiro para descanso da mente ou do físico e que estivessem descansados que ele regressaria -afirmação que não lhes arrancou um ah! de alívio mas um oh! de decepção. Deodato pretendia tão só, saber e sentir de facto e em su sítio, das alegrias que estariam associadas à frase que amiudadas vezes escutava: "é tão bom viver no campo!" Partiu numa sexta-feira pela madrugada, carregado de ilusões, de latas de conserva e pacotes de batatas fritas. Regressou no dia seguinte. Tinha-se esquecido do portátil.
Potsdam, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, November 16, 2007

DUAS RODAS















Já tinha dado tantas voltas à cidade que lhes tinha perdido o conto. E para cúmulo, quando passava segunda ou terceira vez pela mesma praceta ou avenida, os idosos, pensionistas, desempregados e ociosos, aplaudiam-no e gritavam-lhe palavras de incentivo como se estivesse a correr a clássica Paris-Roubaix. Zangado consigo próprio por não ter pedido o mapa de orientação no posto de turismo, o ciclista susteve a marcha junto à passadeira dos peões e perguntou à jovem de óculos escuros "Sabes indicar-me o caminho mais curto para a Avenida dos Aliados?" Ela pestanejou surpreendida, porque era a primeira vez que um homem de bicicleta a abordava na rua "Quando acabares de descer esta rampa, estás no Largo dos Loios, tens a seguir a Praça da Liberdade e em frente a Avenida dos Aliados. Não tem nada que enganar." dando-se ares de quem tinha sido nada e criada na Invicta, quando na verdade tinha chegado -pela primeira vez, à capital nortenha no dia anterior e o único percurso que tinha feito era aquele: dos Clérigos aos Aliados. Ele sorriu-lhe "Se não estivesse com o tempo contado convidava-te para irmos comer uma francesinha... " e pedalou até se perder de vista. Ela continuou a subir em direcção à Cordoaria e o transeunte de boné azul, ouviu-a distintamente dizer "Só me aparecem tarados sexuais pela frente!"


Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, November 11, 2007

DESTINOS
















Não é a primeira vez -nem será a última, que me interrogo sobre o destino das personagens que voltam as costas à objectiva da minha máquina e, decididas, põem pés a caminho saindo do espaço rectangular que as retrataria para a posteridade. Sabendo que o argumento mais conhecido para esta decisão é o direito à privacidade ou a dificuldade em lidar com o reconhecimento público ( o que prova a diversidade de como estamos na vida pois, se por um lado há quem se ponha em bicos dos pés e grite a plenos pulmões "... olhem bem para mim e digam lá se não sou fotogénico!? ", por outro, há menino que se põe a milhas assim que pressente um olhar atento e fotográfico à sua volta) um dos ocupantes do banco à esquerda na imagem, solidário com o meu desapontamento ainda pediu à senhora que se afastava célere "... não se vá embora, que esta é a oportunidade rara de aparecer no Papel de Fantasia. " Ela fez de conta que não ouviu e este sítio provavelmente ficou mais pobre. Porque, quem sabe, se o seu destino não daria aqui uma bela história.



Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, November 04, 2007

ESTENDER O CORPO À CARIDADE.
















Qual ponta de lança não podendo refrear a corrida, saltando em último recurso por cima do guarda-redes no chão para não o lesionar, assim me imaginei quando o pedinte se me arrojou destemido aos pés. O seu gesto técnico revelou a um tempo, elegância, destreza e experiência posicional. Pouco mais pude fazer, que sair deslizando de fininho pela linha lateral não deixando contudo, de admirar o pundonor deste atleta em vias de extinção. Deste desporto (?!) -o de estender a mão à caridade, dizia-se aqui há uns anos atrás que "dar esmola era atrasar a revolução". A estratégia era simples: os pobres seriam ainda mais pobres e engrossariam as vozes de contestação ao poder vigente. A revolução fez-se há um ror de anos e hoje, a pobreza veste outro equipamento: o alternativo. Que é assim a modos como entrar em campo envergonhada, à espera de ouvir os apupos da claque dominante e, fatalmente, continuar a ser condenada à despromoção social enquanto aguarda por outra revolução-sim, outra revolução-não.
Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.