Monday, October 29, 2007

O MENINO E O TATU















Era uma vez um menino que gostava imenso de animais. Toda a espécie de animais, melhor será acrescentar, para que se possa ter uma ideia mais precisa, até onde ia a sua paixão por eles. Mas sabemos que no amor em grupo (não, não é isso que estão a pensar ou sou eu que não estou a deixar passar a mensagem como pretendia) não podemos distribuir por todos, igual tratamento e com o mesmo grau de intensidade. E era isso que se passava naquele parque -onde o verde da relva era mais verde que o feijão da mesma cor e o arvoredo tão frondoso que dificilmente se poderia garantir se o dia estava a dar o lugar à noite ou se a noite se apossara à falsa fé do dia, e coabitavam os mais incríveis e exóticos animais, como, por exemplo, os pombos e as formigas -para citar ao acaso dois desses inestimáveis e fabulosos seres. Ora acontece que, a quem o menino mais atenção começou a dispensar, foi a um vulgaríssimo tatu. O processo de aproximação foi algo lento, mas porque o bicho demonstrava pelo seu aspecto esquelético que passava fome de rabo, três dias, duas maçãs tocadas e a ameaça de pôr no ar uma canção do Toy, foram o suficiente para o ver ir comer à mão da criança. Só que esta, ingenuamente, desconhecia que se há bichos que levam as palavras à letra, o tatu é o rei (a história passa-se num jardim de regime monárquico... ) deles. E ainda as maçãs tocadas do quarto dia não tinham sido trincadas nem a instalação sonora do jardim deixava ouvir as notas do concerto número dois em fá maior de Johann Sebastian Bach, já o tatu (quem sabe, seguindo também à risca as indicações da sua tábua de alimentos) tinha papado num ápice a mão esquerda do surpreendido menino que a partir desse dia nunca mais quis ver um animalejo daqueles à sua frente... nem aos lados. Atrás, distinguem-se na imagem o reporter Franz Joseph e o operador de camera Karl Schmidt a cobrir o acontecimento para o Fantasy Channel.


Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, October 25, 2007

JOGOS DE ESPIÕES E DE AZARES
















... no dia seguinte, apenas o leitor mais atento (ou aquele que não deixa nenhuma página do jornal por devorar - da publicidade às cotações bolsistas,) podia ler uma pequena notícia no Berliner Zeitung "... nesta cidade, foi atropelado mortalmente pelo metro de superfície, um cidadão espanhol natural de Lisboa e com residência no Sardoal, aparentando cerca de cinquenta anos. Estava armado com uma pistola de água, usava peúgas brancas, calças pretas e uma t´shirt com o número treze nas costas. Uma testemunha ocular, referiu o comportamento estranho do homem que, afirmou, caminhava aos zigue-zagues ao encontro do veículo que o apanhou, na transição de um zague para um zigue. Outra testemunha -esta de Jeová, disse ter a certeza -quando o abordou oferecendo-lhe literatura religiosa, que ele a ofendeu grosseiramente no idioma somali. A embaixada espanhola creditada em Berlim, não comenta o assunto e o corpo de Deodato Francisco (é este o nome que consta num livro de recibos verdes de prestação de serviços de canalização), aguarda que alguém o venha reclamar." O que o jornal alemão não informava -por desconhecimento, é que, no preciso momento do acidente, um indivíduo de chapéu e gabardina preta de gola levantada, apanhou do chão, junto à máquina de refrigerantes, um saco de plástico que aparentemente poderia conter lixo. Do interior retirou um dvd onde -em minúsculas letras se conseguia ler "Clementina: a bomba sexual do ocidente"



Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira

Saturday, October 20, 2007

SEM PIEDADE















Impiedosa a chuva não abrandava. Quanto muito, umas tréguas de dois ou três minutos (para grande desconforto e desorientação de Deodato Éfe nas manobras com o chapéu de chuva) e ei-la que voltava mais incómoda e forte que antes. Se o cerco que o inimigo lhe montara se mostrava agora (aparentemente) menos opressivo -a fazer fé na sua vista bem treinada que não distinguia nos dez metros mais próximos ninguém que o quisesse mandar desta para melhor, a formação e a experiência diziam-lhe para não acreditar em milagres e, nem mesmo a informação telefónica de um amigo a dar-lhe conta da vitória do Fátima sobre o Sporting o demoveram dessa convicção. A sua missão estava a chegar ao fim (se é que no mundo da espionagem haja um fim para cada missão, filosofou para com os atacadores dos seus sapatos... ) e apenas à distância do outro lado da rua. Estranhamente, só agora reparava que o sinal verde para os peões, estava sempre vermelho para si. E o homem que garantidamente(?!) era o elo final da cadeia que o tinha trazida a Berlim, avançava agora na sua direcção, ameaçador e disposto a tudo, como se deixava perceber pelas calças arregaçadas. Foi quando o jovem da tshirt laranja e gelado de chocolate e baunilha lhe sussurrou com acentuada pronúncia germânica do norte "É a mim que debes entregar o dbd, ó cromo!". " E a senha? qual é a senha?" inquiriu apreensivo Deodato. "Compra uma senha V-123 que é aquela em que podes biajar em qualquer transporte colectibo que opera na cidade." retorquiu o outro.
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, October 16, 2007

O CERCO















Deodato já não se recordava de se sentir tão cercado, como imaginava estar agora a ser, na grande metrópole alemã. Teria de fazer um enorme esforço de memória para recuar no tempo vinte anos e, revisitar mentalmente a sardenta Clementina que não lhe largou a labita desde a pré-primária e apenas se considerou derrotada quando o então sub-chefe Éfe da esquadra da Mouraria foi convidado a integrar o SIS (Serviços Incrivelmente Secretos) sendo que, logo na primeira missão se viu desterrado para a longínqua cidade de Barrancos para resolver um intrincado caso de roubo de uma fórmula de fabrico de chourição de porco preto. Se o insuspeito agente perseguidor de camisa vermelha do texto anterior se esfumou como por magia do seu ângulo de visão, agora preocupava-se com a jovem -também de vermelho ( logo, a alinhar na equipa de espiões adversária, deduziu brilhantemente... ) que fingia retirar sem sucesso da máquina de sumos, uma lata de feijão verde mas que, pelo rabo do olho, o vigiava atentamente. Isto para não falar do par de ciclistas apeados -ele, naturalmente de vermelho e ela de rosa ( o trajar alternativo... ) que do outro lado da rua não perdiam um único movimento seu. Encurralado, Deodato digitou um número no telemóvel e ouviu-se perfeitamente deste lado: "Legível! estão a preparar-se para me fazerem a folha! Pode-me retirar desta cena?!" Esperou apenas o tempo suficiente que as palavras demoraram a percorrer a distância entre Lisboa e Berlim: "Lamento mas não posso! Este texto acabou aqui.", respondi eu.


Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Friday, October 12, 2007

O NOSSO AGENTE EM BERLIM














Disseram-lhe que não admitiam mais erros e que se das outras missões ele esteve entregue a si próprio, nesta, nem valeria a pena maçar-se em voltar à casa-mãe. E remataram a reunião em tom irónico "Vai, e não te estiques como fizeste em Havana... . Em casa, depois de Laura Linda -a sua insufelabilíssima boneca, lhe proporcionar uma sessão de sexo escaldante, do duche bem quente, de dois whiskies com água lisa gelada e três cigarros Marlboro mornos, não conseguiu alinhavar ideias. O caso era extremamente delicado e uma falha poderia ter desagradáveis consequências diplomáticas. A pressão que lhe tinham colocado nos ombros era tão intensa e pesada que caiu na cama e adormeceu. Meia hora depois, estava num dos centros da capital alemã; os sonhos em classe executiva, sempre foram o seu meio de transporte preferido. Saiu do taxi perto da Alexanderplatz e mal teve tempo de abrir o guarda-chuva no preciso momento em que deixou de chover. O homem de camisa vermelha que o tinha seguido no sonho não desistia e olhou-o frontal e ameaçadoramente. O nosso agente levou a mão ao bolso traseiro das calças, num gesto inequívoco de desafio ao adversário e este afastou-se. Surpreendido pela sensação táctil inesperada do contacto da sua mão com o interior do bolso, Deodato Éfe retirou do mesmo, uma gorda salsicha alemã. Na confusão babilónica do fast-food berlinense, tinha comido a Smith & Wesson de grosso calibre e guardado o "cachorro"...

Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.


Monday, October 08, 2007

COMO SE VÊ NARCISO
















Ficou-lhe de muito novo o gosto pelos espelhos. Recorda-se -ainda gatinhava, da primeira vez que se observou num deles não se assustou com o que viu; pelo contrário, repetiu o exame meia dúzia de outras vezes e ficou convicto que quando parentes mais chegados, vizinhos e alguns passeantes -daqueles que não perdem ocasião de dizer coisas a crianças e animais, exclamavam "que criança tão bonita! não eram palavras de mera circunstância. Destes últimos, alguns chegavam mesmo ao exagero da dúvida quase insultuosa "é menino ou menina?". Paciente, tudo ouvia e registava e, apesar da tenra idade, o ego crescia-lhe tão desmesuradamente que o nosso herói corria o sério risco de lhe minguar o corpo em função do ego. Mas lá diz a história, que para os bem-parecidos a vida não é tão madrasta como para aqueles que passam despercebidos no meio da multidão. A dádiva da beleza (segundo os doutos pareceres dos árbitros da elegância -ou da estética corporal e do cidadão anónimo sempre pronto a acompanhar estes movimentos culturais) foi-se distribuindo generosamente pelo corpo de Narciso. E nada melhor que um espelho (imensos espelhos, atrevo-me a acrescentar) para ele próprio confirmar a sua beleza. Tem sido assim pela sua vida fora: os espelhos (ou tudo aquilo que possa reflectir a sua imagem) acompanham-no quase como uma segunda pele. Não havia espelho (ou montra) de estabelecimento comercial na Rua Augusta que não conhecesse Narciso, nem mulher que não voltasse a cabeça quando com ele se cruzava... segundo afiançava o próprio. Fui encontrá-lo recentemente no ambiente bucólico de Potsdam, mirando-se nas águas de um poço rural, também ele espelho de outras épocas. Estava uma sombra de si mesmo e, directo como costumo ser porque nada devo à beleza, fiz-lhe sentir isso mesmo. Que não, retorquiu com veemência; eram as águas estagnadas e naturalmente sujas provenientes da cavidade no solo, que lhe distorciam a aparência...
Potsdam, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, October 03, 2007

O BISNETO DO CÃO ANDALUZ















Sei -infelizmente, como as coisas funcionam. Se tenho a barriga a dar horas, se preciso urgentemente de ir alçar a perna na jante do fiat uno do vizinho do rés-de-chão ou se estou carente de um afago, lá chegam as palavras d´ordem a chamarem-me à realidade canina : "a pata no ar Dali!" ou "dois latidos longos e um curto... cão que nunca mais aprendes!" e "rebola e abana o rabo, cachorro!". O meu quotidiano está codificado em gestos largos e frases curtas e, é o meu dono quem decide até onde posso ir, na minha sede de conhecimentos e aventuras. No passado domingo um fox-terrier vagabundo, convenceu-me a ir ao encontro do desconhecido (uma viagem do Arco do Cego ao Restelo!!) e logo o meu imaginário disparou em direcção a cenários fabulosos, preenchidos de ossos de todas as cores e cadelas para os faros mais requintados. O meu amo, conhecedor do que se tramava, pelo bufo do Floreca (o gato siamês capado que habita o reduto familiar) olhou-me nos olhos, de homem para cão e disse: Dali: comigo, não te falta nada; do veterinário de renome até a trela extensível topo de gama, tens tudo o que deve ter um cão com sorte. Só te peço uma coisa. Não te estiques. Que para decidir por ti, estou cá eu.
Não aguentei mais. Ontem, à sorrelfa -já ia adiantada a noite, peguei no telefone do hall e disquei o número do João Botelho "Olá João! Fala o Cão-Dali-S., ´tás fixe?. Olha, eu sei que o Buñuel esticou a bota há uns tempos largos e que tu agora estás livre daquele filme "A Filha do Arroz Carolino". Ando há uns tempos a magicar que, com a prática que adquiri no meu blogue (Do Ladrar Dali) bem podia escrever um guião para cinema. Queres ajudar-me a sair do meu triste anonimato e a catapultar-me para a ribalta?Um longo silêncio e finalmente do outro lado do éter a voz do Botelho: "Ó Salvador! Tu tem dó! Mas agora até saio na rifa ao pessoal dos blogues?! Catapulto-te, catapulto-te, mas é com um biqueiro no rabo que só páras na Andaluzia...
Nuremberg, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.