Friday, September 28, 2007

CARICATURAR















O bico do lápis de grafite voava célere sobre o papel branco, em traços que ganhavam vida própria como se do rosto de cada um dos retratados, em carne e osso se tratasse. Aos olhos, só lhes faltavam piscar de emoção e aos lábios, abrirem-se em sorrisos extasiados porque não é todos os dias que somos alvo da atenção pública e tais momentos são para fruir em pleno. Já me tinha apalavrado com o artista e por isso, na fila, seguia com a atenção possível as manobras do mestre desenhador, vocacionado para -se fosse caso disso, num golpe de mágica, aperfeiçoar um nariz desnecessariamente longo ou umas orelhas em forma de abano. Não seria o meu caso: estão-me sempre a fazer lembrar que tenho um rosto perfeito e um corpo a condizer; Adónis e Apolo corariam de vergonha face a tão legível exemplar e não teriam outro remédio senão dar corda aos sapatos e começarem a frequentar o ginásio mais próximo... acrescenta quem me tece tão agradáveis elogios.
Mas quando era quase chegada a minha vez e o homem dava os retoques finais no desenho do casal retratado, constatei espantado que o nariz da jovem -na realidade pequeno e graciosamente arrebitado, no papel era uma autêntica batata do Entrocamento. No rosto do rapaz de sorriso simpático, a evidência ia toda para uma fileira de dentes enormes -capazes de degolar um cabrito. Surpreendido e desalentado, não cheguei a levar o cigarro aos lábios, deixando pender o braço ao longo do corpo, quase queimando as calças verdes de estimação. Sub-reptíciamente fui-me afastando. E ouvia o meu cabelo a crescer. E quanto mais me afastava, mais o cabelo me crescia...


Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, September 23, 2007

ARQUITECTAR CENÁRIOS















Gastava uma grande parte do seu tempo procurando adivinhar o que se passaria no interior daqueles edifícios que aprisionavam as nuvens como se o espaço terreno se fundisse com o céu. Conferências de interesse universal das forças celestes com as grandes potências terrestres? Ou meros encontros pontuais de cortesia diplomática? E os outros? Seriam de carne e osso ou de alguma matéria orgânica desconhecida da ciência deste mundo? Abancariam repimpados à volta de uma mesa cantando hossanas a um cabrito assado no forno ou nem sequer teriam abertura bucal para trincar uma azeitona? E sexualmente? Estava-lhes na massa do sangue ou desconheciam por completo? Socialmente teriam atingido há muito o estádio da liberdade, igualdade e fraternidade ou bastava um chefe de claque desportiva gritar "até os comemos!! e lá iam duas galáxias pró maneta? E os anjos?! Sim, que sempre ouvira dizer que, lá por cima, o que não faltava eram anjos. Papudos, asados e de trombetas, anunciando os seus imaculados pareceres. Também participariam nessas magnas e alargadas reuniões? Maria fê-lo sair das suas congeminações: "Gabriel! Anda para a mesa meu anjo, que o jantar está pronto!"
Berlim, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, September 17, 2007

SEM CONSERTO















Incrédulo, perguntou-lhe se atinava com aquele género de música. Vagamente sonhador e distante, o olhar dela ia para além do grupo que atacava os primeiros acordes de uma canção de Robbie Williams e, sem responder, trauteou acompanhando o solista "... hop a carpet and fly to another Arabian night." Florêncio S. suspendeu a respiração. Aquilo que lhe parecia estar a ser o início de umas belas férias de Verão, repartidas com uma mulher inteligente (citava Kant e Aristoteles com a mesma facilidade com que compunha o traço do baton vermelho nos lábios carnudos), complicava-se. A ele -que de vez em quando, observava curioso a técnica da mulher ruiva do segundo andar do prédio em frente ao seu, a sacudir tapetes à janela e que provavelmente às Mil e Uma Noites logo associaria "As Doce", nunca lhe passou pela cabeça que esta atraente jovem que conhecera na viagem de avião para Amesterdão, sonhasse voar num tapete (quem sabe numa anónima e perigosa companhia aérea de tapetes persas) a caminho de uma noite das Arábias. Apesar de incomodado (Florêncio S. era um homem da cultura e persistente) insistiu e fez sentir a Vanessa G. que há viagens que se não forem bem acauteladas, nos podem sair caras. Ela -talvez porque os músicos tinham deixado de se fazer ouvir neste texto a pedido do autor, saiu finalmente daquela espécie de enlevo e num fio de voz murmurou "Não receies que vou pela Air Arraiolos" O grupo não foi obrigado a um único encore e umas tímidas palmas encerraram o modesto concerto. Sem conserto, porque nunca se chegou a descobrir o paradeiro das restantes partes do corpo, ficou o dono dos sapatos azuis escuros e parte dos jeans que aparecem à direita baixa da imagem.

Hamburgo, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, September 12, 2007

AS MEMÓRIAS DE MÁXIMO AUGUSTO
















Nero Wolf Antunes tinha-se mostrado irredutível: "Nem mais um dia! Uma semana de férias e já gozas! Até parece que desconheces como vai o negócio aqui na Avenida de Roma... E vê lá, não te afastes demasiado porque posso precisar de ti de um momento para o outro. Nada de algarves que aquilo por lá está em chamas e tu, para te meteres em sarilhos és um predestinado. Era o que me faltava saber pela imprensa inglesa que o meu homem de confiança era companheiro inseparável nas noitadas, de um qualquer súbdito das ilhas britânicas com filhos de tenra idade. Tem tento, homem! Aconselho-te a calma das praias da linha de Cascais. Têm pouca areia mas não importa; vais a banhos, não te vais expor à populaça , ávida por um bom drama e por tomar partido. E deixa o futebol em paz pelo menos estes dias. A selecção não precisa dos teus cuidados nem do teu apoio que aquilo com o Felipão são favas contadas a jogar para trás e, os teus lagartos já chegam para te dar cabo do coração no domingo, na Amadora."
Agora, na serenidade romântica da Quinta dos Antonianos -uma das primeiras a surgir no negócio do turismo rural no Alentejo, Máximo Augusto sorria mansamente ao recordar as palavras do seu patrão. Optara pelo campo, mas sem dúvida que o homem tinha experiência de vida, pois os seus conselhos tinham razão de ser. Há muito que não se sentia de alma tão apaziaguada e de corpo tão reconfortado, sem notícias dos quotidianos labirínticos das cidades. Limpou disfarçadamente uma lágrima de felicidade, ao ouvir Tibéria, sua mulher, cantar para o filho que erguia nos braços, "Um destes dias, Roma, vão-te pôr fogo", um dos hits do Verão deste ano. Não era homem dessas coisas, mas Nero merecia. Sabendo do seu gosto pela música, ia-lhe oferecer uma harpa.


Potsdam, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, September 08, 2007

NÃO AO CULTO DA PERSONALIDADE
















É conhecida pelos seus próximos, a pouca simpatia que Alberto Raminhos nutre por aqueles que não conseguem construir uma frase sem que invoquem o pronome pessoal eu. "Eu fiz duas semanas de férias nas Ilhas Caimão!" apressou-se a informá-lo o seu vizinho Elias Balsemão quando ontem, Alberto se limitou a cumprimentá-lo no elevador. Uma parvoeira rematada, pensou, uma vez que não lhe tinha perguntado onde tinha estado nas tais duas semanas em que nem deu pela sua falta e, nem lhe ia alimentar o ego com frases do género " Isso é que é sorte! E aquilo por lá deve ter umas paisagens fabulosas, não?!". Elias depressa percebeu (pelo menos para este tipo de diálogos tinha a percepção apurada) que Alberto lhe tirava o cavalinho da chuva porque retorquiu "Pois no que me diz respeito, passei duas semanas na Nazaré e não encontrei nenhum crocodilo... Tenha um bom dia." Esclarece-se que o vizinho de Alberto é o Presidente da Junta de Freguesia onde ambos residem e além da tal profusão de eus que semeia sem cerimónia no Boletim da Junta, em cada página há, pelo menos, uma fotografia onde se destaca a sua figura, sem falar daquela tipo-passe que acompanha obrigatoriamente?! o editorial assinado por si como não podia deixar de ser . Além disso, o seu nome figura em placas alusivas a inaugurações diversas tais como a do parque infantil na Praça da Junta , do espaço- sede da Associação da Terceira Idade Os Fantásticos Jovens de Espírito ou de um painel de azulejos -de temática enigmática, assinado por um artista amador local junto ao mercado. Dizem os seus opositores (?!) políticos que, se fosse naqueles tempos conturbados em que a democracia ainda não tinha nascido neste país, o retrato de Elias Balsemão estaria bem visível em tudo que fosse sítio: da escola primária até ao café do senhor Raimundo.
O veículo passou rápido, mas Alberto Raminhos ainda conseguiu apanhá-lo na objectiva da sua máquina fotográfica. Não era todos os dias que o seu nome se passeava pelas ruas da freguesia.

Praga, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.


Tuesday, September 04, 2007

O JULGAMENTO
















Ciciavam em alemão -que é um idioma que não domino e por isso não traduzo as palavras incendiadas que das suas bocas brotavam. Mas pobre de mim se não soubesse o que os gestos corporais significam. E estes eram belos porque era da linguagem do amor que tratavam. A posição dos corpos, faria supor que retemperavam forças por momentos, de uma exaltante batalha travada. Mas os olhos nos olhos, a dança dos lábios quase a tocarem-se, anunciavam pela certa que outra batalha se aproximava, pois nestas coisas de amores estivais a guerra não conhece tréguas muito prolongadas. Fixavam os meus olhos o repuxo de água que parecia pretender refrescar os corpos das duas acaloradas criaturas quando ouvi à minha rectaguarda uma voz feminina em bom português-excursionista: "Deviam era ter vergonha na cara! Vem uma pessoa descansada para uma viagem tranquila e leva com esta pornografia na cara! Que falta de respeito por outras culturas!! Anda amiga. Vamos ali ao C&A a ver de umas roupinhas originais.". Incomodadas, afastaram-se de braço dado. Despedi-me dos amantes com um "Divirtam-se!" que naturalmente não perceberam. Mas o que interessava isso?


Clicar na imagem para ver todos (mas todos!) os pormenores com olhos de ver.


Nuremberg, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.