Thursday, July 26, 2007

O INSÓLITO ACONTECIMENTO










Prenunciava-se o final de uma tarde de domingo de Maio, sem a presença de sol e com um vento fresco que aconselhava o agasalho aos mais idosos ou friorentos, quando o caminhar de viajante inveterado de lugares e da gente que os preenche, me conduziu até àquela praça. O que me chamou desde logo a atenção, foi o número apreciável de pessoas que ali se encontravam, quer sentadas quer de pé, mas todas elas com os olhares centrados para a esquerda dum ponto que a imagem não mostra. Não perdi tempo a questionar quem ali estava mais à mão de semear, no caso, o homem de fato claro, sentado, à direita baixa da foto e que segurava um saco de plástico com ambas as mãos. "Espectáculo de dançares folclóricos?, comício eleitoral?, teatro urbano? ou o anunciar de uma nova fé?" inquiri de um fôlego. "... é que daqui não consigo distinguir o que se passa." Olhou-me sem surpresa ou desagrado e respondeu "Como é que consegue ver o que está a acontecer, se está desse lado da fotografia? Chegue-se lá aqui para o pé de mim. Vá lá!... mais um pouco que eu não mordo. E agora diga-me lá, se já não observa distintamente o que antes não conseguia descortinar?" Tinha razão o homem. Do lado esquerdo da foto vi -em perfeitas condições, o modem do meu computador, uma moldura com os meus seis filhos (alinhados em escadinha por alturas e escanzeladíssimos) numa ida à praia de Monte Gordo, dois pequenos peluches-porta-chaves, sendo um deles um leão de calções azuis?! e o outro um elefante-a-fingir-de-porquinho que me foi oferecido por uma artista de cinema espanhola, quando fiz a bonita idade de trinta anos, um dicionário português-português por causa das tosses e uma peúga-amuleto, branca?!, usada e com um buraco no calcanhar.

Burgos, 2006. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Este sítio encerra para férias a partir desta data e regressa no início de Setembro.

Saturday, July 21, 2007

ENSAIO (sombriamente curto) SOBRE A VISIBILIDADE
















"Procuro entender porque me queres perceber de corpo inteiro se de cada vez que por aqui passo, me exponho sem subterfúgios. Mostrei-te recentemente, as partes terminais dos meus membros inferiores (numa das vezes por sinal, bem despidas de preconceitos) e não te chegou. Choveram mensagens, telefonemas e e-mails a pedir mais. Confuso, num primeiro momento acreditei que pretendias que exibisse mais pés. Mas como? se apenas possuo um par deles e tivesse apenas mais um que fosse, já estaria há muito a jogar ao lado do Cristiano Ronaldo... Nessa tua ansiedade, esqueceste até que o ano passado, por esta altura, pudeste entreter o olhar com uma das minhas pernas (a direita, se a memória não me atraiçoa) a banhos na Caparica, cedida sem custos de produção que para fins sociais a minha solidariedade não tem limites. E se te tirasses de cuidados, depressa chegarias à conclusão que cada uma das minhas palavras aqui expressas regularmente, me revela a cor dos olhos, o formato do nariz, o desenho dos lábios, a altura do pescoço, o traço do tronco, o... fiquemos por aqui que sou pessoa de princípios e não procuro atingir fins de duvidosa licitude como os da publicidade enganosa.
Espero que percebas que não pretendo construir um puzzle em torno da minha pessoa, com o fito de te partir a cabeça mas, ao contrário, que textos como este te ajudem a conhecer-me como a palma das tuas mãos. Anexo a minha fotografia de corpo inteiro (sem pés, que esses já os conheces até à exaustão) num destes dias em que a minha sombra caiu desamparada no chão da rua, sem qualquer justificação aparente. "

Depois de fazer um print, Deodato dobrou a folha e introduziu-a cuidadosamente no envelope de "correio aéreo". No endereço podia ler-se:
À
Nossa Senhora das Necessidades Visíveis
37433-176 CÉU



Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, July 15, 2007

CLARAMENTE SOMBRIO
















Dele se poderia dizer que não tinha opinião. Não se lhe conhecia filiação partidária nem clubística. Não tinha amigos porque isso obrigava a decidir a favor de uns em prejuízo de outros. Era-lhe indiferente que chovesse torrencialmente no norte ou que o sol esturricasse a sul. À mulher que o levou ao casamento ouvia-se dizer frequentemente que "... o meu marido é uma jóia. Para ele está tudo bem." Era um homem que nunca exteriorizava as suas emoções e, suspeitava-se que algum dia as tivesse tido. Confidenciou-me um familiar chegado, que certa vez, tarde da noite, o surpreendeu no computador a ler textos do blog "Papel de Fantasia". Nem um músculo da sua face se movia...
Ontem chegou-me a notícia que tinha sucumbido a uma doença grave da qual nunca deu indícios de padecer. Porque era seu vizinho e nunca ouvi da sua parte uma palavra menos agradável(?!), cumpri o dever de passar pelo local onde se velava o corpo. Ao deter-me junto ao féretro, a face inexpressiva do defunto parecia querer dizer-me: "Bem te tramei! que eu sei o que tu querias. Material a meu respeito para escreveres textos na blogosfera... ".
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, July 09, 2007

ANUNCIAÇÃO
















Imagens semelhantes, os seus olhos já tinham visto centenas, sem exagero. Mas todas elas tinham em comum, a representação de um diáfano ser alado pairando sobre a terra, com um luminoso halo sobre a cabeça, vestes brancas símbolo de imaculada pureza e os pés ocultos por uma pequena e alva nuvem que parecia sustentar a aérea figura. Neste caso -e porque ainda não lhe era possível distinguir o resto do corpo por diversos motivos de ordem técnica(!?), este ser apoiava-se num geométrico triângulo e os pés -quase que apostava, calçados pela popular marca Guimarães, exibiam-se sem qualquer pudor. Nem os jeans azuis e desbotados, ajudavam a conferir a marca da respeitabilidade que se pretende a quem difunde anúncios de âmbito divinal... se fosse esse o caso. Aguardou pacientemente três dias, que lhe fosse dada oportunidade de ver o rosto de quem apenas lhe concedia o favor de mostrar os pés.
No final do terceiro dia, o céu fez-se negro da cor do carvão (ia a noite adiantada... ) e de imediato começou a cair uma chuva diluviana (o Verão já não era como dantes: tanto chovia em Faro como fazia sol em Abrantes... ) acompanhada de uma violenta trovoada. Mal tinha acabado de se ajoelhar -tal era o respeito que sentia pelos fenómenos em que a natureza era pródiga, quando fascinado testemunhou o triângulo descer suavemente até tocar o solo e dele sair o par-de-pernas-dos-jeans-azuis-desbotados-e-os-pés-calçados-pela-popular-marca-Guimarães. Assim mesmo. Da cintura para cima, nadinha se enxergava! "Do mal o menos pensou; Quem não vê caras, vê corações... " De imediato ouviu uma voz (que decerto lhe era dirigida pois até o horizonte se perder de vista, não se descortinavam pastorinhos nem alguém que estivesse atento às piadas sobre membros do governo) que assim falou: Nada temas! Porque sei o imenso gosto que tens em ensinar, venho anunciar que podes ir descansado à Junta Médica. Lá porque perdeste as mãos, não é caso para deixares de leccionar piano no Conservatório... "
Almada, 2007. Tela, texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, July 04, 2007

PAISAGEM COM PÉS E SEM CABEÇA
















A mão firme traçou um triângulo isósceles na paisagem. Depois descalçou-se "até ao pescoço" (metáfora de qualidade duvidosa que utilizava com desnecessária frequência... ) e deitou-se na terra ainda húmida, por via de uma manhã nascida fresca, pontuada por algumas nuvens de má cara, tão gratas a alguns artistas plásticos de tez pálida porque adversários indefectíveis de esplendorosos dias de sol aberto. Os olhos eram todos para o alto, como se esperasse algum sinal divino, nem dando conta que o verde dos campos o cercava por todos os lados. Ele era agora mais uma ilha -entre tantas, triangular e daltónica, de um arquipélago onde a esperança terrena deixara de ter cor.

Acordou estremunhado ao som do rádio-despertador. "... sendo a temperatura máxima para hoje, em Lisboa, de trinta graus." anunciava o radialista de serviço. Afinal, não passara de um sonho. Estava em casa e tinha adormecido na cama circular com colchão de água. E o espelho grande no tecto reflectia isso mesmo.



Almada, 2007. Tela, texto e foto de Alberto Oliveira.