Monday, January 29, 2007

O VISIONÁRIO PERIFÉRICO

















Ontem aconteceu-me aquilo que habitualmente é designado por uma visão. No caso vertente, uma visão celestial, ou se quiserem uma visão do céu. Não. Não me imaginem a ironizar com qualquer espécie de fé, como por exemplo aquela que aconselhava adultos e criancinhas "se te portares bem vais para o céu.". Por um lado, confrontava-se o pessoal com a imagem simpática da viagem sem retorno e por outro, não oferecia a mínima hipótese de um cidadão experimentar o agridoce sabor de pôr o pé em ramo verde. Confesso que em criança, depois de me soprarem tão ternurenta frase ao ouvido, andei uns tempos sem ousar olhar para o alto, quem sabe se, com o receio de que o céu fosse assim um lugar onde poucos teriam assento e, no caso dos menos bafejados pela sorte, só lá se chegar com uma forte cunha.
Esta é uma visão digamos que mais materializável, assim arranje os patrocinadores certos. Porque não, utilizar o espaço celeste (ou o céu), para que os imensos problemas de tráfego e os custos (humanos e materiais) que eles nos acarretam, cessem de vez? Não estou a falar de transportes aéreos nem de pontes; sugiro que se ande... no ar. O equipamento que imaginei está aí. Experimentei ontem o protótipo e foi uma maravilha! Cá em baixo o pessoal atropelava-se nas passadeiras, os carros buzinavam, enfim, a confusão costumeira. Lá em cima passeei-me nas calmas, e apenas havia o carro do vizinho Euclides estacionado à sua porta. Um autêntico paraíso! E basta apenas colocar o zingarelho em tudo que seja sítio e nós andarmos de cabeça... no ar.
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Thursday, January 25, 2007

QUASE TUDO SE EXPLICA NO ROSSIO.
















«... isto são autênticas gaiolas para pássaros! onde não cabem mais que vinte pessoas e têm de estar apertadas umas contra as outras como sardinhas em lata e com este tempo de chuva e esperas de vinte minutos entre dois autocarros diga-me lá se uma pessoa quando chega ao emprego tem alguma vontade de trabalhar?! quem havia de estar aqui para saber como é que as coisas se passam no dia-a-dia eram aqueles senhores dos governos, mas esses andam de cu tremido em brutos carros com motorista e se fôr preciso ainda levam batedores da polícia de trânsito para abrir caminho e passar à frente dos transportes que utilizamos e isso é que não posso levar à paciência pois até parece que querem dar a entender que a nossa vida não vale a ponta de um corno e por isso lhe devemos estender a passadeira da vassalagem! o senhor acha isto bem?! e aquele esperto que chegou agora e aproveita a confusão para ficar o mais possível perto da porta do autocarro e entrar à frente de quem chegou antes? está a vê-lo?? e não há ninguém que lhe diga nada... o senhor que chegou primeiro que eu, por acaso reparou se passou algum carro para o Restelo? não? pois é o que eu lhe digo e repito, assim não vamos longe! que é como quem diz, não chegamos a parte nenhuma. E... o senhor para onde vai?»
«Minha senhora, eu não vou, cheguei. Cheguei do Parque da Paz onde assassinaram há quatro dias atrás a minha sombra. Foi assim a modos que uma espécie de romagem de saudade, ao local onde estivemos juntos pela última vez e tão violenta e definitivamente nos separararm. Não ouviu falar?! olhe que a comunicação social não se cansou de noticiar outra coisa nos últimos três dias... Mas a senhora vá ao texto anterior a este e logo fica a saber como tudo se passou.»
Lisboa, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Sunday, January 21, 2007

CRIME NO PARQUE DA PAZ
















Não havia nada a fazer: a relva húmida do parque acolhera-a na queda que lhe marcou o último sopro de vida, que se conhecia por ser de persistentes esperanças em futuros menos cinzentos que alguns passados que vivera. O médico legista, a uma pergunta do inspector da judiciária respondeu que "... pela coloração que apresentava - esverdeado-escuro, morrera de uma overdose de esperança." O inspector arqueou a sobrancelha esquerda (tique que lhe ficara de uma carreira recheada de dúvidas), sinal que não acreditava peva na opinião do médico. Os indícios de homicídio não eram visíveis a olho nú porque se pode matar sem deixar marcas. Mas o móbil do crime era bem claro: o roubo, que no descontrole da fuga deixou uma pista de quinze euros. Quando chegou o cento e doze um dos paramédicos perguntou ao colega «Como é que se transporta a sombra de alguém para a morgue?»
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Se não se impressiona com cenas chocantes, clique na imagem para ver melhor o móbil do crime. Mas o mais rápido possível para não dificultar o tráfego...
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Wednesday, January 17, 2007

IMAGEM & TEXTO
















Pergunto-me o que vou fazer com esta imagem pois não encontro à vista desarmada motivo para lhe subtrair uma história com o mínimo de credibilidade, de preferência com personagens pouco ou nada comuns e um final dramaticamente inesperado. Quando acabei de tirar a foto, reparei que numa das varandas (que convenientemente não aparece na imagem) um homem olhava na minha direcção e logo a seguir marcou um número num telefone móvel. Esta situação bem podia configurar a narrativa pretendida pois não seria de todo descabido que o cidadão estivesse a contactar a polícia, denunciando que no imóvel em frente, alguém lhe devassava a privacidade. Mas essa hipótese já a afastei antes de iniciar estas letras, porque o meu telefone tocou e do outro lado estava o homem da varanda a lembrar-me que tinha ficado de passar aqui por casa para ver a avaria no televisor. A menos que... sim, no andar da marquise com persianas amarelas, uma mulher tinha-se debruçado e gritado algumas palavras (que não entendi devido à distância) na direcção da rua para um homem com uma gabardina côr de camelo. Este, voltou a cabeça para cima e de imediato inclinou o torso para trás, abrindo num gesto rápido a gabardina e voltando a fechá-la. O que a mulher da marquise de persianas amarelas viu, não sei; mas meteu-se para dentro e não voltou a aparecer. Minutos depois de ter tirado a fotografia, fui à rua comprar tabaco e o velhaco do Mendes dizia -rindo-se alarvemente, para um cliente «Aquela gaja do sétimo, do prédio da farmácia, é completamente maluca. Deixa o marido sair e só quando o tipo chega à rua é que lhe pergunta aos berros se leva a camisola vestida!».Depois voltou-se para mim «E o senhor Gaspar o que deseja? Ah! o tabaco da ordem... Não leve a mal a minha curiosidade, mas... nunca lhe passou pela cabeça -de tantas vezes que vem comprar tabaco... não voltar?» e fazia gestos com o polegar em direcção ao lado da rua ondo moro. Decidi-me: não volto mais ao texto para a imagem...
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Saturday, January 13, 2007

O CAFÉ do CAFÉ
















É um dos estabelecimentos mais antigos da minha freguesia e, se a memória não me atraiçoa, foi nele que muito jovem, experimentei o sabor do primeiro café que bebi. Por essa altura dava pelo nome de "A Mimosa do Feijó" e orgulhava-se de servir a melhor pastelaria da cidade. Cerca de quarenta anos depois, regressado a Portugal, surpreendi-me que o edifício tivesse resistido ao tempo e a pastelaria também. Só que o negócio já não se confina agora aos bolos de arroz, pastéis de nata ou mil folhas que acompanhavam então o galão, o carioca ou a bica. Servem-se também refeições e os amantes dos petiscos, pela tarde adentro, podem entreter-se com uma travessa de caracóis ou de cadelinhas. O actual dono -neto do antigo proprietário, não se limitou a restaurar o espaço e a acrescentar-lhe outros hábitos gastronómicos: mudou-lhe o nome para "The pan to the fire and the rice are raw " mais consentâneo com os serviços que presta e a chamada de atenção a algum turista acidentalmente perdido pela outra banda do rio.
Falei com o Santos-neto e contei-lhe onde me reunia com alguns amigos a discutirmos as incidências do último Sporting-Benfica (ou Benfica-Sporting que acabou empatado para não dar oportunidade a bocas foleiras neste recatado sítio... ), da estreia de um sangrento western onde os indios sioux ou navajos eram sempre os maus da fita ou das últimas prisões que os gajos da polícia política do economista de Santa Comba tinham efectuado numa tasca em Alhos Vedros. «Era ali, precisamente onde está aquela mesa, de canto.» e apontei-lhe o lugar. O homem percebeu e sossegou-me. «Fique descansado que o senhor pode sentar-se ali quando quiser! ( e chamou um empregado) Ó Carlos! quando este senhor não estiver, aquela mesa tem sempre a indicação de "reservada", percebes? ( e voltando-se para mim) e vou tirar-lhe uma fotografia a si, lá sentado. Para colocar na parede com o título "O nosso cliente mais antigo"; pode ser?».
Não fiquei muito favorecido na foto, é verdade. Mas o homem pelo menos demonstrou boa-vontade...
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Tuesday, January 09, 2007

NÃO TENHO RECEIO DELES...
















"... se vier um de cada vez... " assim se expressou Sónia Braga, sentindo-se desafiada pelo protagonismo que o semanário deu ao futebolista "que não disse ontem o que revelou hoje e amanhã logo se verá o que ainda tem para não confessar" e ao deputado-prevenido(?!) "que põe as barbas de molho". E exigiu uma foto onde a visibilidade da sua beleza -pese a idade, é notória (as plásticas dão uma ajuda mas o belo é sempre bem-vindo) com o perfume do mistério que envolve qualquer mulher, pois reserva à capacidade inventiva dos leitores, imaginá-la descalça ou não. Na minha opinião fez bem; por esta vez conseguiu, por breves momentos embora, anular o retrato de um país cuja má fotogenia se revela no teor dos factos noticiados que ladeiam a paranense.
Discreto como é seu timbre, o presidente de todos(?!) os portugueses optou por uma visita à India.
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Foto (de primeira página do semanário "Expresso") e texto de Alberto Oliveira.
Clicar na imagem para ver maior.

Friday, January 05, 2007

OS DEMÓNIOS da MEMÓRIA.
















«... bem te procurei vislumbrar mas qual quê!? de ti nem sombra ou uma ínfima pista que fosse -seria suficiente o rasto no ar (só a mim perceptível... ) da combinação mais-que-perfeita do perfume que usavas sobre o aroma do teu corpo. Agora, que os meus olhos já se acostumaram a ler o que este véu espesso de gotículas aquosas consegue dissimular, estarás decerto longe. Tão longe que começo a ter dificuldade em pronunciar o teu nome. Tão perto da memória iniciar o processo de guardar o que é possível não esquecer.»
Levantou a gola do sobretudo, esfregou as mãos com força e pôs-se a caminhar com destino. O nevoeiro dava mostras de debandar mas o frio cortante não. Tinha-se decidido; iria a alcácer-quibir. Quem sabe se nestas coisas do amor os resultados das contendas não seriam diferentes dos de outras guerras? E que entre mortos e feridos alguém haveria de regressar?...
Almada 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.

Monday, January 01, 2007

O BRINQUEDO
















Então foi assim no meu primeiro dia do ano: peguei no eléctrico rápido que os meus pais me deram no natal e aí vou eu pelos carris disponíveis até à Cova da Piedade. Vocês não imaginam como me diverti com as caras de espanto e desolação das pessoas que nas paragens me faziam sinal com a mão ao longe e só à minha aproximação se apercebiam das dimensões do transporte-brinquedo que eu empurrava. Ao fim da descida acabou-se a brincadeira por falta de carris assentes no asfalto e um senhor disse-me que eu devia ter vergonha por estar a enganar quem esperava confiante pelo transporte prometido há muito e que tarda ainda mais. E porque me ri (com o riso ingénuo das crianças da minha idade), o senhor perguntou-me também, se essa era a educação que os meus pais me davam. Em casa, depois de contar o sucedido ao meu pai, ele disse-me que eu não me devia divertir com a boa-fé da população e que por isso me ia retirar o eléctrico-brinquedo até eu atingir a maioridade. Coitadas das pessoas que vão ficar privadas de alguma esperança nos seus horizontes mais próximos...
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Texto produzido a partir das palavras de Ronaldo Afonso, 6 anos, morador no concelho de Almada.
Almada, 2007. Texto e foto de Alberto Oliveira.