Wednesday, August 30, 2006

O CANDIDATO AUTÁRQUICO
















Era um modesto empregado bancário de quase quarenta anos e tinha a perfeita noção que na carreira profissional nem a gerente chegaria, daquela quase anónima filial para onde o tinham desterrado há muito.
Mas no partido, o percurso estava a ser fulgurante. Se apenas há meia-dúzia de anos se tinha oferecido para colar uns cartazes por altura de umas eleições legislativas, ei-lo, na actualidade, a dirigir uma reunião regional com a maior das naturalidades. Tinha boa presença, era fluente e o seu entusiasmo contagiante; porque fazia fé nas teses partidárias e nos seus dirigentes máximos. E isso era suficiente para o fazer esquecer das suas limitações em áreas do conhecimento e das competências.
As cúpulas já o tinham sondado antes. Mas com a aproximação das autárquicas a questão colocava-se de facto; ele era o homem certo para liderar a lista do partido naquela cidade. Nesse momento, as suas convicções sentiram-se ligeiramente abaladas. Embora contrariasse a política do partido oponente que detinha a gestão camarária -porque na política as coisas são mesmo assim... , a verdade é que ele próprio se sentia bem naquela cidade e que nada de essencial ou estruturante precisava de ser mudado ou... prometido; que são duas coisas totalmente diversas. Pela primeira vez (em matéria da sua actividade política... ) aconselhou-se com a sua mulher. E ela foi peremptória. «Querido, não hesites. Vai em frente, que tu tens cabeça até para cometimentos mais altos. Diria mais; tens uma grande cabeça!»
Veneza, 2006. Foto e texto de: Alberto Oliveira.
Clicar sobre a imagem para ver o... essencial.

Sunday, August 27, 2006

AS CORES de um RIO
















Era assim que imaginava um espaço de arte. Sem a praxis maçadora, da menina que assim que ele põe um pé adentro de qualquer galeria, corre solícita a meter-lhe na mão uma folha A-4 com os preços das obras expostas em dígitos bem visíveis, ao mesmo tempo que o informa que se tiver alguma questão a colocar está ali "para o que fôr preciso". Que pressente que os olhos dela não perdem nenhum dos seus movimentos enquanto se desloca, e de cada vez que se detém um pouco mais na apreciação de uma peça, sabe que corre o risco de assédio comercial imediato, o que o leva a deduzir que tem uma espécie de "X" na testa (salvo seja!), a apontá-lo como coleccionador de largas posses, o que não é o caso.
Aqui, a liberdade de desfrutar as cores e as formas é plena; e a cumplicidade entre o céu azul cerúleo e a mansidão do rio que atravessa a cidade, é o cenário ideal para se imaginar, também ele, detentor de alguns dos trabalhos que observa. De olhos deliciados, debruça-se no murete que ladeia a margem. E tanto se delicia e se debruça, que cái ao rio... que o acolhe entre as cores e formas que se espelham à sua superfície.
Ljubljana, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Thursday, August 24, 2006

AMOR TÓRRIDO
















Eugénio pensava que já tinha visto tudo na vida. Mas equivocava-se redondamente. Naquela tarde soalheira, o que primeiro lhe feriu a atenção foi a cor da vaca, depois a indiferença com que os transeuntes passavam ao lado do animal e finalmente o pedaço de madeira espetada no rabo do mamífero. Foi-se aproximando lentamente e mais o espanto lhe marcou o rosto, pois se a uma distância de dez metros do bicho já ele lhe abanava o rabo, quando ficou cara-com-focinho do dito cujo, os enormes olhos escuros fitaram-no docemente. Como que magnetizado pelo insólito, só se apercebeu da enorme língua a lamber-lhe a boca tarde demais. Depois o animal foi-se derretendo lentamente. De paixão.
Gelado, Eugénio entrou na primeira pastelaria que viu e pediu um copo de leite. Bem quente. E um pastel de nata.
Budapeste, 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.

Monday, August 21, 2006

A CICLISTA TÍMIDA























Nunca entendi muito bem porque não se revelava o raio da mulher. A bicicleta conheço-a de cór (meia-bicicleta, quero esclarecer, que o selim e a roda pedaleira nunca os vi mais gordos). Quadro negro, guiador metalizado e o cesto das compras azul, assente no garfo da roda dianteira. Para adensar ainda mais o mistério a velocipédica proprietária da comum pasteleira tem o mau costume de pedalar sem mãos. Não que fosse maneta, imaginava eu na minha boa-fé. Mas há para aí tanto exibicionista na arte da condução de qualquer veículo, que mais um menos uma, não faria a diferença... Mas o que eu não posso mesmo levar à paciência é o facto, insólito, da ciclista pedalar permanentemente em marcha atrás. De tal sorte?! que quando dou por ela... já era! Foi assim que a captei, numa das suas idas ao mercado.
Afinal, o Rodrigues da tabacaria acabou por me revelar o que estava por detrás de tal atitude -contribuindo para tal, a avultada aquisição que lhe fiz de uma esferográfica bic, dois envelopes com papel de carta e uma caixa de clips. A Juvenália (é a graça da ciclista) sempre foi muito despistada -uma cabeça de vento! chamava-lhe a mãe. Um belo dia, já mulher feita, com a doidice de dar uma voltinha na bicicleta, tomou banho, enxugou-se e... aí vai ela! Só quando passou pelo primo Luis, ao iniciar a subida da rampa da Rua do Vale de Santo António e ele exclamou «Ó Jú! mas tu vais nua!!» é que caiu em si. E da máquina...
Milão, 2006. Foto e texto de Alberto Oliveira.

Friday, August 18, 2006

SORRINDO à CHUVA












Quando arrumou o velocípede junto aos outros, próximo do passeio, vi-lhe o sorriso no rosto. Era uma mulher jovem e anónima que provavelmente iria iniciar mais um dia de trabalho. Com um sorriso no rosto. Logo a seguir começou a chover - uma chuva que teimava em aparecer de quando em vez, para desespero do turista latino que, se estivesse nas suas mãos, decretaria que "quando se passeia no Verão não chove!". Ela abriu o guarda-chuva -sem fechar o sorriso do rosto, atravessou a rua e desapareceu por uma das portas do edifício em frente. No interior do café vienense onde me encontrava, a música de Johann Strauss continuava a inundar suavemente o estabelecimento. Paguei e vim para rua. Enfrentando a chuva com um sorriso. Austríaco.
Viena, Agosto 2006. Texto e foto de: Alberto Oliveira.